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Celso Marconi: Quando um cineasta e quatro mulás debatem islamismo 

Este é um filme que nunca chegaria até nós se não fosse o sistema streaming e o site Mubi. Portanto, só agora podemos curtir Iranian, um debate entre um cineasta ateu, Mehran Tamadon, e quatro senhores Mulás na cidade de Teerã.

Por Celso Marconi*

Iranian

Quem teve a ideia do filme foi o cineasta, que certamente duvidava do islamismo como doutrina inteiramente dominante em seu país, e assim teria como enfrentar àqueles que se lhe opunham na sua maneira de viver o dia a dia. Mehran convidou esses quatro senhores para a sua casa em Teerã e durante dois dias, numa sala preparada especialmente com tapetes e sem a intervenção da família, puderam debater desde questões religiosas até o próprio costume de ouvir música e que tipo de som se deveria ouvir.

Na verdade, Mehran Tamadon criou uma equipe técnica, mas escreveu apenas uma espécie de pré-roteiro. O filão a ser seguido devia estar e esteve com as cinco pessoas sentadas à maneira oriental, em semicírculo, e cada uma falando totalmente de improviso. A câmera que procurasse acompanhar as pessoas. Claro que foi uma maneira de filmar não tão original, mas era mais importante para o cineasta simplesmente documentar os debates do que se preocupar com a linguagem cinematográfica.

Assim, temos um documentário longo que foi montado com bastante antecedência, de anos, e com apoio de uma produção franco-suíça. Para nós do Brasil é bastante novo o fato de assistirmos a uma obra cinematográfica falada em persa. Pois há alguns anos, se um filme como este chegasse ao nosso mercado, seria no mínimo falado em inglês, e mesmo que os personagens fossem autênticos, suas vozes sempre estariam deformadas. E essa posição é que sempre nos colocou inclusive contra a dublagem dos melhores filmes.

Quando você começa a assistir Iranian, fica com a percepção de que não irá entender praticamente nada, pois eles falam muito e muito rápido. A forma em que temos a filmagem não facilita, não pretende fazer concessões. Entretanto, alguns minutos depois, já entendemos melhor. E para quem quiser se deter no estudo do Islamismo e de seus mandamentos como advertência para a vida, sem dúvida o melhor será repetir a visão do filme.

Um fato que nos surpreende é o comportamento descontraído dos Mulás e do próprio cineasta, pois em muitos momentos eles conversam com bastante alegria, riem, e mesmo mudam de maneira de pensar de acordo com a posição do opositor. Não se apresentam como possíveis pessoas radicais e sectárias, como em geral se comenta que eles são. Mulás não são pessoas oficialmente com cargos públicos, mas qualquer senhor que conheça o islã.

Eles debatem por exemplo o fato de lavar ou molhar o rosto como um ritual, e discutem se lavar o rosto tem algum sentido senão o de limpar ou mesmo refrescar o rosto. E um mulá explica então a diferença do significado de ser ou não um ritual. Também debatem muito a circunstância de uma foto trazer ou não o retrato de uma mulher despida. Sem dúvida, os debates se voltam principalmente para hábitos. Uma discussão mais longa é sobre o fato de ouvir música, e um mulá defende que prefere ouvir sons naturais e não vozes masculinas ou femininas. Talvez eles gostassem da Bossa Nova de João Gilberto.

Podemos destacar que certamente no cerne de um debate como esse, feito no Irã, o que vamos ter é o conhecimento em torno da Cultura e vamos sentir que o islamismo poderá mostrar que a doutrina vivida pelos árabes em primeiro lugar é uma barreira contra a invasão da Cultura norte-americana. Nos momentos finais do documentário, vemos o cineasta rearrumando a sua sala, tirando os tapetes que tinham sido colocados, botando no toca-discos uma música e partindo para sua vida rotineira, sem se preocupar em manter ou não o mundo cultural do seu povo.

No começo, Iranian teve limitações ou censura do governo iraniano e o cineasta e um mulá foram cassados em seu passaporte, embora o cineasta pudesse continuar com seu equipamento.

 


* Celso Marconi, 89 anos, é crítico de cinema, referência para os estudantes do Recife na ditadura e para o cinema Super-8