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Claudio Daniel: O fio da navalha 

Poeta gaúcha Márcia Friggi publica o seu primeiro livro de poesia, Lâmina (Editora Kotter), que faz o registro poético dos trágicos acontecimentos na história recente do Brasil, com perfeito equilíbrio entre emoção, pensamento e construção estética.

Por Claudio Daniel*

"Lâmina", de Márcia Friggi

A lâmina lírica de Márcia Friggi faz incisões na pele do papel, revelando na escrita poética as cicatrizes de um país mutilado, de um tempo mutilado, de pessoas mutiladas. É uma grafia de intensa subjetividade, e ao mesmo tempo o testemunho histórico de eventos que mergulharam o país no mais escuro caos (o que nos faz lembrar do brado desolado do poeta baiano Gregório de Matos, que, em um de seus admiráveis sonetos, escreveu: “Ó caos confuso, labirinto horrendo”).

Poesia documental, sim, mas que não descuida do rigoroso artesanato da linguagem, cabralina faca-só-lâmina. Encontramos, em seu universo poético, versos de finíssima sensibilidade musical, construídos com o pleno domínio técnico de aliterações e assonâncias, como verificamos nestas linhas da composição Outra Vez Pássaro: “Da pelve surgem plumas / que se abrem em asas / sobre as omoplatas”. E também imagens de alto impacto, que traduzem emoções e pensamentos com a paleta do poeta-pintor, ou poeta-calígrafo, como acontece neste haiku-porrada: “Noite de garoa / meninos dormem na rua / o frio é lâmina nua”.

A precisão e o realismo quase fotográfico desta peça nos faz pensar na teoria do shasei, formulada pelo pintor japonês Nakamura Fusetu, que defendia o “retrato do estado natural, a representação verídica não só de paisagens, mas também de situações do cotidiano”, conforme definição do poeta Maurício Arruda Mendonça, em seu belo estudo e tradução de haikus do mestre Nenpuku Sato.

A voz poética de Marcia Friggi, porém, encontra o seu grau mais elevado de ebulição nas composições poéticas que privilegiam a logopeia, ou “dança do intelecto entre as palavras”, segundo Ezra Pound, como acontece na peça intitulada Coturnos – cujo título nos faz pensar nas botas usadas pelos skinheads dos grandes centros urbanos, tatuados com suásticas e armados com porretes e correntes. O poema é na verdade uma expressiva metonímia da crescente militarização do Brasil, que vive o crescimento da violência policial e dos crimes de ódio: “Pisam na íris / farsas e fardas / fardos de horror / suástica na carne / títulos, ações / bíblia, whatsapp / unção dos coturnos / dólar, Wall Street / dízimo, Auschwitz”.

Em apenas duas linhas, a autora consegue condensar alusões a diversos fatos políticos da história recente do país, sem contudo limitar o poema a um registro circunstancial: a mistura explosiva de reacionarismo, agressão, fundamentalismo religioso, medidas econômicas neoliberais, práticas de exclusão social e genocídio não se limitam, infelizmente, a um único contexto nacional, sendo hoje uma triste realidade no Brasil e na Ucrânia, na Líbia e na Argentina, na Bulgária e em Ruanda, para citarmos apenas poucos países.

Márcia Friggi olha para o presente imediato, mas, pela força expressiva de suas linhas, consegue projetar as palavras numa dimensão mais ampla, não circunscrita no tempo e no espaço: “Há esta noite imposta / a turvar os sonhos / e uma lua-lâmina /sobre uma só cabeça. / Há um gosto de bílis / nesta ânsia / por levante e luta”, escreve a poeta na peça intitulada Arbítrio.

A visão crítica da realidade, porém, é apenas um lado dessa obra rica em sons, imagens e ideias; o outro lado é o mergulho íntimo em suas memórias e vivências, na tentativa de fixar, nos estreitos limites do poema, alguns flashes de sua trajetória pessoal. Assim, por exemplo, no poema Fado, cujo título remete ao conhecido gênero musical português, imortalizado por Amália Rodrigues, mas também à ideia de destino: “Talvez tenha sido / naquela tarde, / com a luz / do outono / em halo solar / na sua íris. / Sinal fechado, / tocava 14 Bis / ou era Titãs? / Você sorria. / Nos lábios, / a brasa / de um beijo / e o verbo / em pétala”.

Notamos nesta composição, além da delicada musicalidade, a presença da linguagem coloquial, fraturada em linhas breves, imagens do cotidiano e a inserção de poucas metáforas, resultando num lirismo de efeito imediato, que não decai no mero confessionalismo. O difícil equilíbrio entre expressão emocional e construção estética alcança aqui um patamar elevado, que coloca a peça entre as mais instigantes do volume: “Talvez ainda antes, / escama cósmica, / pólen de promessa / em céu póstumo”.

O desafio baudelairiano de registrar em palavras cenas prosaicas do cotidiano, diga-se de passagem, é como o fio de uma navalha: poucos autores brasileiros contemporâneos conseguem, atualmente, atravessar esse fio sem cortar-se. Márcia Friggi, com sensibilidade, domínio técnico das artes da palavra e indiscutível voz pessoal, vence este e outros desafios e projeta-se entre as novas vozes da literatura brasileira.

* Claudio Daniel, poeta, tradutor e ensaísta, é formado em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero, com mestrado e doutorado em Literatura Portuguesa pela USP, além de pós-doutor em Teoria Literária pela UFMG. É colaborador do Prosa, Poesia e Arte.