É na poesia do escritor modernista que temos suas produções mais inovadoras, do ponto de vista estético – ao lado do romance-rapsódia Macunaíma
Publicado 02/03/2020 10:00 | Editado 01/03/2020 23:59
Mário de Andrade (1893-1945) foi um dos mais originais escritores do modernismo brasileiro: poeta, romancista, crítico literário, musicólogo, folclorista, deixou extensa obra em todos esses gêneros literários, mas é na poesia que temos as suas produções mais inovadoras, do ponto de vista estético – ao lado do romance-rapsódia Macunaíma. Mário de Andrade assimilou influências de Walt Whitman, do futurismo italiano, das vanguardas francesas da década de 1920, mas sua poesia alimentou-se sobretudo da linguagem coloquial, dos regionalismos, do folclore do imaginário popular, dos mitos indígenas e africanos, e ainda dos temas sociais e políticos. Sua dicção, personalíssima, é, ao lado da poesia pau-brasil de Oswald de Andrade, o ponto de partida de quase toda a poesia brasileira e contemporânea.
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PAISAGEM n. 1
Minha Londres das neblinas finas!
Pleno verão. Os dez mil milhões de rosas paulistanas.
Há neve de perfumes no ar.
Faz frio, muito frio…
E a ironia das pernas das costureirinhas
parecidas com bailarinas…
O vento é como uma navalha
nas mãos dum espanhol. Arlequinal!…
Há duas horas queimou Sol.
Daqui a duas horas queima Sol.
*
Passa um São Bobo, cantando, sob os plátanos,
um tralálá… A guarda-cívica! Prisão!
Necessidade a prisão
para que haja civilização?
Meu coração sente-se muito triste…
Enquanto o cinzento das ruas arrepiadas
dialoga um lamento com o vento …
*
Meu coração sente-se muito alegre!
Este friozinho arrebitado
dá uma vontade de sorrir!
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E sigo. E vou sentindo,
à inquieta alacridade da invernia,
como um gosto de lágrimas na boca.
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GAROA DO MEU SÃO PAULO
Garoa do meu São Paulo,
–Timbre triste de martírios–
Um negro vem vindo, é branco!
Só bem perto fica negro,
Passa e torna a ficar branco.
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Meu São Paulo da garoa,
–Londres das neblinas finas–
Um pobre vem vindo, é rico!
Só bem perto fica pobre,
Passa e torna a ficar rico.
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Garoa do meu São Paulo,
–Costureira de malditos–
Vem um rico, vem um branco,
São sempre brancos e ricos…
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Garoa, sai dos meus olhos.
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EU SOU TREZENTOS
Eu sou trezentos, sou trezentos e cinquenta,
As sensações renascem de si mesmas sem repouso,
Ôh espelhos, ôh! Pireneus! ôh caiçaras!
si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!
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Abraço no meu leito as milhores palavras,
E os suspiros que dou são violinos alheios;
Eu piso a terra como quem descobre a furto
Nas esquinas, nos taxis, nas camarinhas seus próprios beijos!
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Eu sou trezentos, sou trezentos e cinquenta,
mas um dia afinal eu toparei comigo…
Tenhamos paciência, andorinhas curtas,
Só o esquecimento é que condensa,
E então minha alma servirá de abrigo.
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ODE AO BURGUÊS
Eu insulto o burguês! O burguês-níquel
o burguês-burguês!
A digestão bem-feita de São Paulo!
O homem-curva! O homem-nádegas!
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,
é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!
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Eu insulto as aristocracias cautelosas!
Os barões lampiões! Os condes Joões! Os duques zurros!
Que vivem dentro de muros sem pulos,
e gemem sangue de alguns mil-réis fracos
para dizerem que as filhas da senhora falam o francês
e tocam os “Printemps” com as unhas!
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Eu insulto o burguês-funesto!
O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!
Fora os que algarismam os amanhãs!
Olha a vida dos nossos setembros!
Fará Sol? Choverá? Arlequinal!
Mas à chuva dos rosais
o êxtase fará sempre Sol!
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Morte à gordura!
Morte às adiposidades cerebrais!
Morte ao burguês-mensal!
Ao burguês-cinema! Ao burguês-tiburi!
Padaria Suíssa! Morte viva ao Adriano!
“— Ai, filha, que te darei pelos teus anos?
— Um colar… — Conto e quinhentos!!!
Más nós morremos de fome!”
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Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma!
Oh! purée de batatas morais!
Oh! cabelos nas ventas! Oh! carecas!
Ódio aos temperamentos regulares!
Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia!
Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados
Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,
sempiternamente as mesmices convencionais!
De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!
Dois a dois! Primeira posição! Marcha!
Todos para a Central do meu rancor inebriante!
*
Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!
Morte ao burguês de giolhos,
cheirando religião e que não crê em Deus!
Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!
Ódio fundamento, sem perdão!
*
Fora! Fu! Fora o bom burguês!…
*
LUNDU DO ESCRITOR DIFÍCIL
Eu sou um escritor difícil
Que a muita gente enquizila,
Porém essa culpa é fácil
De se acabar duma vez:
É só tirar a cortina
Que entra luz nesta escurez.
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Cortina de brim caipora,
Com teia caranguejeira
E enfeite ruim de caipira,
Fale fala brasileira
Que você enxerga bonito
Tanta luz nesta capoeira
Tal-e-qual numa gupiara.
*
Misturo tudo num saco,
Mas gaúcho maranhense
Que pára no Mato Grosso,
Bate este angu de caroço
Ver sopa de caruru;
A vida é mesmo um buraco,
Bobo é quem não é tatu!
*
Eu sou um escritor difícil,
Porém culpa de quem é!…
Todo difícil é fácil,
Abasta a gente saber.
Bajé, pixé, chué, ôh “xavié”
De tão fácil virou fóssil,
O difícil é aprender!
*
Virtude de urubutinga
De enxergar tudo de longe!
Não carece vestir tanga
Pra penetrar meu caçanje!
Você sabe o francês “singe”
Mas não sabe o que é guariba?
— Pois é macaco, seu mano,
Que só sabe o que é da estranja.
*
MANHÃ
O jardim estava em rosa ao pé do Sol
E o ventinho de mato que viera do Jaraguá,
Deixando por tudo uma presença de água,
Banzava gozado na manhã praceana.
*
Tudo limpo que nem toada de flauta.
A gente si quisesse beijava o chão sem formiga,
A boca roçava mesmo na paisagem de cristal.
Um silêncio nortista, muito claro!
As sombras se agarravam no folhedo das árvores
Talqualmente preguiças pesadas.
O Sol sentava nos bancos tomando banho-de-luz.
*
Tinha um sossego tão antigo no jardim,
Uma fresca tão de mão lavada com limão,
Era tão marupiara e descansante
Que desejei… Mulher não desejei não, desejei…
Si eu tivesse a meu lado ali passeando
Suponhamos Lenine, Carlos Prestes, Gandhi, um desses!…
*
Na doçura da manhã quasi acabada
Eu lhes falava cordealmente: — Se abanquem um bocadinho.
E havia de contar pra eles os nomes dos nossos peixes.
Ou descrevia Ouro Preto, a entrada de Vitoria, Marajó,
Coisa assim, que pusesse um disfarce de festa
No pensamento dessas tempestades de homens.
*
QUANDO MORRER EU QUERO FICAR
Quando eu morrer quero ficar,
Não contem aos meus inimigos,
Sepultado em minha cidade,
Saudade.
*
Meus pés enterrem na rua Aurora,
No Paissandu deixem meu sexo,
Na Lopes Chaves a cabeça
Esqueçam.
*
No Pátio do Colégio afundem
O meu coração paulistano:
Um coração vivo e um defunto
Bem juntos.
*
Escondam no Correio o ouvido
Direito, o esquerdo nos Telégrafos,
Quero saber da vida alheia,
Sereia.
*
O nariz guardem nos rosais,
A língua no alto do Ipiranga
Para cantar a liberdade.
Saudade…
*
Os olhos lá no Jaraguá
Assistirão ao que há de vir,
O joelho na Universidade,
Saudade…
*
As mãos atirem por aí,
Que desvivam como viveram,
As tripas atirem pro Diabo,
Que o espírito será de Deus.
Adeus.