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Claudio Daniel: Uma poética de pedra e de flor 

Poesia de Marcela Cividanes Gallic revela várias camadas de sentido, desde as sugestões visuais e sonoras até as imagens enigmáticas, o amor e o humor. Sua elaborada linguagem poética revela o amadurecimento de uma autora que mistura as referências da tradição moderna a um rico imaginário pessoal.

Por Claudio Daniel*

Marcela Gallic

Marcela Cividanes Gallic, em Rastro à Deriva, seu livro de estreia, apresenta um conjunto de poemas consistentes, densos, que revelam as trilhas de seu diálogo pessoal com a poesia moderna brasileira e norte-americana – João Cabral de Mello Neto e William Carlos Williams, por exemplo –, mas também o registro de memórias e jornadas, como aquelas derivadas de sua experiência como alpinista, que ela retrata, com elevado lirismo, no poema Cala Ganone:

a música mais intensa é o corpo
aderido em forma de granito, calcário ou solidificação de magma
tornando-se ROCHA
e de cima, no cume, cheiros se misturam, o sol ofusca
o invisível se imagina e o silêncio cura

Nesta composição, dividida em dez seções breves – dísticos, tercetos –, a autora faz uma notável descrição da paisagem, de maneira elíptica, fragmentária, dos movimentos e sensações corporais do alpinista, cujos “músculos tencionam na ferocidade da fratura”, sentindo o “êxtase nos ossos da nuca, no antebraço, nas entranhas”.

Nessa jornada ao áspero abismo vertical, destaca-se a presença da rocha, que assume feições de personagem, de outro, presença desafiadora ou amorosa, ampliada em outras composições do livro, desde a peça de abertura, intitulada Anônima Pedra: “Fragmentada em metal branco / Perpetua caminhos / De garras fincadas / Mãos fluidas rasgam-se / No dorso jazzístico de tuas vértebras”, até as linhas curtas e precisas de Red Rocks: “passagem de fendas / no inabalável ressoar / acústico de abismos”.

Com a pedra, Marcela aprendeu a lição da densidade, das formas imprecisas, irregulares, ásperas, cheias de nuances de cor e relevo; aprendeu também o diálogo da pedra com o vento, esse antípoda incorpóreo de concentrada leveza. Ao longo do volume, encontraremos essas qualidades, minerais e eólicas, incorporadas na modulação da sintaxe, no corte de cada linha, no encadeamento das estrofes, na música pétrea, objetiva e cortante. Porém, sua paleta de cores vai além do granito e do calcário, da ossatura de relâmpagos: encontramos aqui também a delicadeza da flor imprevista, drummondiana, que faz ecoar sua tessitura cromática, concentrada, de frágil beleza.


Capa do livro de poemas Rastro à Deriva

Assim, por exemplo, no poema Partida, que tem epígrafe de Mário de Sá-Carneiro (“Perdi-me dentro de mim / Porque eu era labirinto / E hoje, quando me sinto, / É com saudades de mim”), onde lemos estas linhas: “Assisto ao meu nada / Em suicidar de cores / Ao perder as flores / Na contramão inventada”. É a dimensão existencial, autorreflexiva, que faz contraponto ao desenho da natureza, com a mesma força lírica. Estamos lendo uma autora que domina as notas de seu instrumento. Numa das mais belas peças do livro, Marcela escreve, conciliando o suave e o áspero: “Sou incógnita em teu olhar desconcertante / Suspensa na voz que clama / Invasão obscura do desasossego / No corpo itinerante / Gosto vermelho indecifrado / Pedrarias salivantes / Confundem tua carne / Na minha, mutante”.

Erotismo, humor, enigmas, paradoxos, sugestões visuais e sonoras atravessam as páginas deste livro (publicado pela Lumme Editor), convidando o leitor disponível a decifrar as várias camadas de sentido de uma poética madura, tecida em pedra e flor.

* Claudio Daniel, poeta, tradutor e ensaísta, é formado em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero, com mestrado e doutorado em Literatura Portuguesa pela USP, além de pós-doutor em Teoria Literária pela UFMG. É colaborador do Prosa, Poesia e Arte.