A Tese de Doutoramento de Ricardo Luiz de Souza, com o título Identidade nacional e modernização na historiografia brasileira – O diálogo entre Romero, Euclides, Cascudo e Freyre, é um ensaio sobre estudiosos da Cultura Popular no Brasil.
Por Marcos Silva*
Publicado 28/12/2018 17:21 | Editado 13/12/2019 03:29
Ricardo discute cada um dos autores anunciados em seu título e estabelece vínculos entre aqueles percursos, bem como com questões gerais da história. Ele retoma a discussão sobre modernidade e identidade nacional, amplia a periodização do moderno entre nós, ao incorporar Romero e Cunha ao tema, e permite avaliar articulações entre os argumentos de mudança social e tradição, de meados do século XIX até a segunda metade do século XX.
A identidade nacional sofreu descarte por alguns setores historiográficos brasileiros desde os anos 70 do século XX. Ela foi identificada apenas a lixo ideológico, o que resultou em exercícios de presentismo (crítica às apropriações do nacionalismo pela ditadura), como se todo conceito devesse atender só às exigências teóricas e políticas contemporâneas ao analista. Hoje, sob a avalanche da globalização, a retomada crítica do tema pode reservar outros ângulos de análise, sem a obrigação de aderir a seus ter- mos. E Ricardo é perspicaz ao problematizar identidade nacional, apontando presença em relações de poder, interação com outras nações, construção como discurso, dinâmica, heterogeneidade.
O debate sobre o moderno, no Brasil, tem sido confundido, frequentemente, com a questão do Modernismo, movimento artístico e intelectual de um grupo específico (mais paulista, com alguns nomes mineiros e cariocas), num tempo curto – anos 20 do século passado. Alfredo Bosi, na História concisa da Literatura brasileira, salientou a necessidade de pensar sobre a distinção entre Modernismo e modernidade, usando o exemplo de Graciliano Ramos – sem vínculos com o primeiro, mas muito importante para a outra. Mônica Pimenta Velloso, no livro Modernismo no Rio de Janeiro: Turunas e Quixotes, fez uma discussão paralela a essa, ao abordar literatos e caricaturistas cariocas do início do século XX, mais habitualmente associados ao Parnasianismo. Ricardo Souza aborda pensadores brasileiros de diferentes gerações nesse universo e demonstra muito satisfatoriamente a pertinência de seu passo.
O título da tese é claro, em termos descritivos, mas melhoraria se substituísse “modernização” (ato ou efeito de modernizar) por “modernidade” (qualidade do moderno), e incluísse “cultura popular”, pela importância desse tema em suas páginas. A indicação dos autores abordados por um sobrenome (Romero, Cascudo e Freyre) ou o prenome (Euclides) de cada é uma opção compreensível em termos de concisão, mas prejudicial por dificultar sua clara identificação, além de apelar para critérios diferentes. Seria melhor usar os nomes pelos conhecemos mais: Sylvio Romero, Euclides da Cunha, Câmara Cascudo e Gilberto Freyre.
A modernidade plástica europeia, no início do século XX (com um prelúdio em Paul Gaughin, final do século anterior), valorizou padrões estéticos diferentes das tradições próprias ao velho continente. O Museu de Arte Moderna de Paris abriga coleção de más- caras e esculturas da África e da Oceania, antes pertencentes a vários artistas que atuaram naquela cidade no período, e a reflexão sobre suas concepções visuais se faz presente não apenas no Cubismo. No Brasil, o prestígio das artes e da cultura europeias assumiu aquela tendência, de uma maneira muito peculiar: o extraeuropeu era aqui! Daí, os vínculos entre moderno e tradições de etnias africanas e americanas se mesclarem, entre nossos artistas e intelectuais, com as reflexões sobre identidade nacional.
Ao estabelecer um diálogo entre aqueles quatro autores, Ricardo não salientou uma peculiaridade: a dupla Sylvio Romero/Euclides da Cunha conviveu diretamente, o que também ocorreu com o par Câmara Cascudo / Gilberto Freyre. Câmara Cascudo organizou uma edição anotada de Sylvio Romero (Cantos populares do Brasil) e Gilberto Freyre fez um perfil de Euclides da Cunha (incluído no livro Perfil de Euclides e outros perfis).
Embora a tese seja equilibrada na atenção que dispensa a cada autor (74 páginas para Sylvio Romero; 82 para Euclides da Cunha; 96 para Câmara Cascudo; 87 para Gilberto Freyre), a pequena diferença a mais dedicada ao terceiro explica-se pelo interesse que lhe dedica Souza e pelo menor debate historiográfico sobre o polígrafo potiguar, que tem sido pesquisado principalmente nos campos de Estudos Literários e Etnografia.
Caminhos de Câmara Cascudo
Abordando Câmara Cascudo, a tese apresenta traços biográficos desse autor, junto com um balanço dos estudos sobre folclore que o antecederam e as características gerais de seus escritos.
Ricardo cita as expressões “enciclopedismo inculto” (1916), de João Ribeiro, e “festiva alegria do povo” (1944), de Júlio Maria Bello, referidas à cultura popular. Ambas são muito adequadas para compreender a identificação entre manifestações folclóricas e harmonia social, mesclada a uma reticente admiração pelo povo – enciclopédico, mas in- culto; merecedor de fascínio porque alegre. Em Câmara Cascudo, certamente, tais traços se fizeram presentes, embora não se devam negligenciar tensões internas de seus textos. Nos livros de história política e administrativa que ele produziu – e que Souza considerou, acertadamente, menos inovadores que os escritos etnográficos –, apareceram cenas de enorme violência contra índios e africanos, caso dos episódios de lutas entre portugueses e holandeses no período colonial (caso da História do Rio Grande do Norte); e uma obra de maturidade como Tradição, Ciência do Povo enfatizou o caráter até científico da cultura popular.
A tese de Souza também evoca as relações entre Mário de Andrade e Câmara Cascudo. Faltam mais nuances que permitam entender o que há em comum e também as diferenças entre os dois. Mário estudava folclore pensando em identidade nacional e elaborando uma estética, como artista e orientador de artistas que era, facetas que não se fazem tão presentes no escritor norte-rio-grandense. Ambos realizaram preciosos registros da música e da dança populares tradicionais, mas não tiveram ouvidos nem olhos para o trabalho de transformação que a música sofria no universo da indústria fonográfica.
O silêncio de Mário de Andrade sobre o nascimento do samba e de outros gêneros musicais de mercado continua a ser um tema à espera de maior debate. Ricardo registra, inclusive, uma audição de Sinhô, em São Paulo, promovida pelo Clube de Antropofagia, sendo mencionados Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade numa homenagem ao músico – a ausência de Mário é sintomática. O autor do Ensaio sobre a música brasileira, de 1928, dedicou depois atenção ao samba rural paulista, mas não discutiu o trabalho que os primeiros sambistas de mercado faziam naquele período, cruzando suas experiências populares com o universo das técnicas modernas de gravação e difusão. Uma hipótese preliminar, a ser investigada, é de que tais sambistas desenvolviam uma modernidade à parte, da qual alguns dos outros modernos (eruditos?) evitavam se aproximar.
Ricardo Souza enfatiza o caráter rural do folclore trabalhado por Luís da Câmara Cascudo, dizendo mesmo que o folclore urbano “não foi o estudado por Romero e Cascudo”. Embora a etnografia de Câmara Cascudo evoque muitas lembranças pessoais da infância no sertão nordestino, o escritor não deixou de abordar manifestações folclóricas urbanas, e a História da Cidade do Natal contém exemplos disso.
A inclusão de Lima Barreto na tese, como valorizador da cultura popular no Rio de Janeiro, não deve fazer esquecer as ironias do romancista sobre os estudos dedicados a esse universo na passagem do século XIX para o século XX, que podem se referir a Sylvio Romero (as tentativas de pesquisa de Policarpo Quaresma junto a uma ex-escrava, que se lembrava muito vagamente de canções de ninar) e Euclides da Cunha (o geógrafo diletante, que enfeitava seus escritos com um vocabulário raro).
Certamente, a crítica de Lima Barreto não se configurou como rejeição desse estudo, antes salientou as dificuldades para se chegar à cultura popular. Um personagem central do romance Triste fim de Policarpo Quaresma, de 1914, é Ricardo Coração dos Outros, mulato, compositor e cantor de modinhas. E o romance se encerra com a personagem Olga (mulher que enfrentara o marido para defender o padrinho Policarpo e suas convicções) indo encontrar Ricardo, o que indica duas esperanças no universo político e cultural do Brasil: a mulher independente, filha de imigrante, e o homem do povo, mestiço.
Folcloristas e espaço universitário
A tese de Ricardo Souza cita o artigo “Notas sobre as Ciências Sociais no Brasil”, de Renato Ortiz, para realçar a anterioridade, no Brasil, dos estudos sobre folclore em relação às regras de método da universidade. Câmara Cascudo, todavia, teve formação universitária (estudou Medicina, em Salvador e no Rio de Janeiro, e Direito, em Recife) e foi professor fundador da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Sylvio Romero, Euclides da Cunha e Gilberto Freyre, em diferentes instituições, também tiveram formação de nível superior (os estudos militares do autor de Os Sertões valeram-lhe um diploma de Engenharia). Existe uma universidade brasileira mais sintonizada com a produção acadêmica europeia e norte-americana a partir dos anos 30 e 40 do século XX, onde aqueles homens não estudaram – os dois primeiros porque já estavam mortos, Câmara Cascudo e Gilberto Freyre porque já eram formados (o último na Universidade Columbia, em New York). Vale a pena pensar nas múltiplas faces da universidade até então existente no Brasil, que incluíam um caráter “antecipado” em Direito, Medicina e Engenharia, particularmente. Nessas áreas, os estudantes tinham formações panorâmicas, que até abrangiam interdisciplinaridade e prática de pesquisa.
Reforçando esse desencontro entre estudos folclóricos e pesquisa sociológica acadêmica, Ricardo lembra uma observação de Florestan Fernandes, no livro A condição de sociólogo: “Se nós dependêssemos da dinâmica dos grupos de folk, nós nunca teríamos revoluções socialistas”.
Recordada em 2006, a reflexão de Florestan assume um significado patético: com ou sem grupos de folk, até hoje não tivemos revoluções socialistas!
Souza enfatiza aquela oposição, confrontando a “consolidação dos estudos acadêmicos e da academia como espaço por definição da atividade intelectual” com um “caráter ensaístico da obra de Cascudo”. Sem uma avaliação dos trajetos efetivos desses dois estilos (o ensaísmo não é monopólio do autor potiguar), corre-se o risco de apenas torcer por um ou pelo outro. A releitura atual de Câmara Cascudo por importantes nomes da pesquisa acadêmica evidencia qualidades eruditas que não cabem numa rejeição in limine. E é tempo de, resguardada a extrema importância da universidade, entender a multiplicidade de espaços da atividade intelectual: museus, centros de pesquisa, imprensa, editoras, etc.
A afirmação de que Câmara Cascudo “não formou discípulos” é muito questionável: como caracterizar os trabalhos de Osvaldo Lamartine, Veríssimo de Melo e Deífilo Gurgel, dentre outros autores potiguares?
Caso semelhante ocorre quando Ricardo declara que “o reconhecimento oficial traduzido em uma série de homenagens feitas principalmente na província veio antes do reconhecimento acadêmico”. A edição especial da revista natalense Província, de 1968, em homenagem ao etnógrafo, incluiu textos de autores como Carlos Drummond de Andrade, Eneida, Gilberto Freyre, Jorge Amado, Hermann Lima, Paulo Rónai e Afonso Arinos de Melo Franco, num amplo reconhecimento pelos pares (importantes escritores, de vários gêneros literários e de diferentes regiões do país); e foi publicado, em 1971, Luís da Câmara Cascudo: 0 anos de vida intelectual 1918-1968, erudito balanço bibliográfico, escrito pela poetisa e bibliotecária Zila Mamede.
A tese entendeu que “Como historiador, ele [Câmara Cascudo] aventura-se muito pouco além das divisas do Rio Grande do Norte”. Faz falta uma periodização mais clara dessa produção historiográfica. A avaliação é válida para a etapa final do trabalho de Câmara Cascudo com história. Nos anos 20 e 30, todavia, ele publicou livros fora do campo temático estadual, como Lopez do Paraguay, Conde d’ Eu e O Marquez de Olinda e o seu tempo, 1793-1870, dentre outros.
Um desdobramento dessa avaliação foi indicar a escassa presença dos grupos populares nos livros de história de Câmara Cascudo, em flagrante contraste com seus estudos etnográficos. Também aqui, é preciso dosar a crítica – correta, em termos gerais, mas inadequada para certas passagens da História do Rio Grande do Norte (o capítulo sobre a pecuária no século XVIII, que inclui indicações a respeito do cotidiano de vaqueiros em comitivas e de outros setores da população), da História da República no Rio Grande do Norte (as menções a versos e cantigas nas eleições) e da História da Cidade do Natal (festas religiosas e populares), dentre outras. Além disso, é necessário pensar sobre o que era povo naquela etnografia: o conceito incluía tanto trabalhadores pobres quanto os primos e tios do escritor, proprietários de terras, definição presente na obra-prima que é Vaqueiros e cantadores. O universo palaciano da história política e administrativa, portanto, podia possuir ganchos com aquela concepção de povo. E a palavra História compareceu nos títulos de alguns de seus mais importantes estudos etnográficos, como História da Alimentação no Brasil e História dos nossos gestos.
A rejeição de se considerar o Câmara Cascudo historiador precursor da história das mentalidades pode ser confrontada com a importância do etnógrafo para esse campo de conhecimento. Afinal, Jacques Le Goff e seus colaboradores, na obra coletiva La Nouvel- le Histoire, dedicaram verbetes ao sociólogo Émile Durkheim e ao antropólogo Marcel Mauss; e o historiador universitário mais atualizado metodologicamente não hesita em dialogar com os escritos etnográficos daquele e de outros autores brasileiros, como se observa em vários dos verbetes que compõem o Dicionário crítico Câmara Cascudo, organizado por mim.
Uma questão muito adequadamente valorizada por Ricardo é a centralidade do gênero memorialístico no conjunto dos trabalhos de Câmara Cascudo, o que remete também para a importância da escrita nesse universo.
Desde o primeiro livro – Alma patrícia, dedicado a escritores potiguares do final do século XIX e das décadas iniciais do século XX –, Câmara Cascudo falou de temas e personagens que fizeram parte de sua vida. Alguns daqueles escritores até foram seus amigos. O volume Histórias que o tempo leva… incorporou narração de seu pai sobre o episódio messiânico da Serra de João do Valle, no Rio Grande do Norte. Os estudos etnográficos (inclusive aqueles dedicados à literatura popular) mencionaram lembranças e personagens de seu círculo familiar e afetivo. Mesmo o romance Canto de muro contém referências indiretas a sua infância e juventude natalense. E os quatro volumes de memórias explícitas surgiram entre 1968 e 1972 (O tempo e eu – Memórias, Pequeno manual do doente aprendiz, Na ronda do tempo e Ontem – Memórias), quando o escritor já estava em idade avançada – dos 70 aos 74 anos.
Ricardo define essa postura como “busca proustiana”, esforço para “resgatar o que está desaparecendo”. Na época da corrida espacial (fins dos anos 60 do século XX), em entrevista, Câmara Cascudo considerou que o folclore não se extinguiria e que os próprios astronautas o carregariam em suas naves.
Ao mesmo tempo, Souza entendeu literalmente certas passagens de Câmara Cascudo, como é o caso da “jumentalidade da minha geração” (entrevista de 3 de dezembro 1978 para o Diário de Pernambuco) e de um suposto autodidatismo do escritor. Existe muito de retórica da humildade nessas falas, misturada com autoironia e também com uma dose de escárnio dirigida àquele presente. Câmara Cascudo nunca escondeu sua dimensão de erudito, poliglota, versado em clássicos – Prelúdio e fuga do real é um diálogo com alguns dos grandes autores mundiais de sua preferência. É necessário não confundir um estilo histórico de formação de elite (professores particulares, biblioteca pessoal) com autodidatismo. Interpretar essa retórica é dar conta do peso literário que Câmara Cascudo incorporou em sua obra. A escrita não é apenas assunto desse autor, é também seu fazer. Poeta e romancista bissexto, ensaísta prolífico, seu texto mereceu a seguinte avaliação, na antologia Literatura do Rio Grande do Norte, organizada por Constância Lima Duarte e Diva Cunha: “seja qual for o tema tratado, é sempre literário”.
Essa relação com a escrita é um problema mais amplo no que se refere à cultura popular. Ricardo assinala uma “empatia que levou o pesquisador (…) a ser dominado pelo objeto”. É possível questionar se há objeto ou se o trabalho de Câmara Cascudo constitui confissão – donde a propriedade de Souza evocar Jean-Jacques Rousseau – e autoconsciência.
Modernidade e tradição
As tensas relações do pensamento de Câmara Cascudo com a modernidade foram muito destacadas por Ricardo Souza, com realce para sua opção pelo tradicional. Nesse campo, a província e seu estilo de sociabilidade surgiram como escolhas do escritor, contra aquilo que a grande cidade representava de agitação e impessoalidade.
Também aqui, é preciso estar atento a algumas doses retóricas. Câmara Cascudo viveu em Natal, uma cidade ainda pequena na primeira metade do século XX. No entanto, ele transitou pelas principais metrópoles brasileiras e teve grande parte da obra editada em São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Porto Alegre e Salvador, além de colaborações em periódicos europeus e de outros países americanos. Sua ligação afetiva e intelectual com Mário de Andrade nos faz lembrar que os debates sobre tradição só eram possíveis no contexto da modernidade, responsável por acentuar a consciência daquela questão.
Câmara Cascudo escreveu num Brasil ainda predominantemente rural, mas tendendo ao predomínio econômico e populacional da cidade – no fim de sua vida, tal tendência já se consolidara plenamente. Seu trabalho faz parte desse processo, sob o signo da nostalgia (a identidade nacional existente num mundo que se desfazia), mas também de esperança (as tradições persistindo). E a imagem de povo apareceu com um papel destacado nesse processo de preservação de tradições – sua criação foi menos ressaltada.
Apesar das tensões, fica evidente que Câmara Cascudo entendeu a modernidade como horizonte inescapável.
Além das biografias
Ricardo Souza reitera, nas conclusões sobre os quatro autores que estudou, o peso de uma análise biográfico-sociológica. Evoca as “origens sociais” daqueles pensadores, salientando, em Câmara Cascudo e Gilberto Freyre, serem “descendentes de elites rurais provincianas em pleno processo de decadência e perda de poder a nível político e econômico”. Sylvio Romero foi identificado a uma “classe média nordestina empobrecida” e Euclides da Cunha associado à “pequena burguesia urbana”.
Essa interpretação tem o mérito de permitir entender articulações sociais das obras desses homens, e o grande risco de explicar esse problema com generalizações. Afinal, a imensa maioria dos “descendentes de elites rurais provincianas”, da “classe média nordestina empobrecida” e da “pequena burguesia urbana” não escreveu o que Sylvio Romero, Euclides da Cunha, Câmara Cascudo e Gilberto Freyre produziram! Seus escritos têm vínculos mediados com aquelas bases sociais, pois, se eles permanecessem apenas como expressões dessas origens, seriam banais ideólogos das respectivas frações de classe. Quais mistérios fazem com que os quatro ainda nos desafiem e até seduzam, mesmo quando irritam com argumentos racistas (Sylvio Romero e Euclides da Cunha) ou com a ênfase exclusiva na harmonia social e o fascínio pelas elites (Câmara Cascudo e Gilberto Freyre)?
O historiador marxista Nelson Werneck Sodré, em A ideologia do colonialismo, respondeu a essa questão com a denúncia de racismo e dependência em relação a certos padrões culturais e políticos das potências mundialmente dominantes, sem comentar Câmara Cascudo. A resposta de Werneck Sodré ainda é insuficiente. Qualquer autor é mais do que seus projetos ideológicos conscientes, e isso evidencia que seus textos são dotados de tensões internas, de perspectivas até indesejadas E também isso faz a tese de Ricardo Souza mais instigante, ao convidar o leitor atual a uma retomada daqueles pensadores, procurando entender suas múltiplas articulações com a historicidade brasileira.
Ao mesmo tempo, esse leitor não se exime de responder sobre quais são as culturas populares, as identidades nacionais e as modernidades de seu interesse, hoje. O modelo mais habitual de Brasil, nos debates abordados por Ricardo Souza, remete para o padrão formador ibérico/africano/indígena, acrescido da imigração europeia (a asiática não mereceu maior atenção). Neste começo de século XXI, a identidade nacional, sempre em tensa elaboração, engloba imigração de hispano-americanos, coreanos, chineses, russos e croatas, dentre tantos outros, mais emigração de brasileiros – inclusive, dos descendentes de imigrantes… A população urbana é largamente majoritária no país. O tema da pós-modernidade tornou-se corriqueiro. Como discutir aquelas questões agora?
A resposta não está dada em nenhum autor. Ela é tarefa de cada um de nós. E não tem cabimento cobrar de Câmara Cascudo (nem de Sylvio Romero, Euclides da Cunha e Gilberto Freyre) tarefas que são nossas.