Em 1966, o jornalista, chargista e humorista Sérgio Porto – que assinava com o pseudônimo Stanislaw Ponte Preta – compôs o Samba do Crioulo Doido. Com ironia, definiu a política e a vida brasileira da época. A expressão ganhou vida própria e virou sinônimo de desordem geral. Se tudo está assim meio bagunçado, diz que “isso está um samba do crioulo doido”. Até o cantor e compositor – e agora também ator – Criolo tinha doido em seu o sobrenome artístico.
Por Marcos Aurélio Ruy*
Publicado 02/12/2019 12:48 | Editado 13/12/2019 03:29
Fosse vivo, Porto cunharia a expressão Samba do Branco Doido para este país com Jair Bolsonaro na Presidência e o Brasil descampando para o precipício. A parcela da elite brasileira assumiu o poder em 2016 com o golpe de Estado, aprofundou o golpe com a eleição da extrema-direita – e agora parte dela não sabe como se livrar do monstro que emergiu da lagoa. Outra parte simplesmente segura na cauda monstruosa e se regozija de ser contra o saber, a cultura, os interesses da nação.
Será que o gênero musical mais popular do país vai mais uma vez resgatar a identidade nacional? A ver.
Bom lembrar que nesta segunda-feira (2), como em cada 2 de dezembro desde os anos 1960, comemoramos o Dia Nacional do Samba. Oriundo das senzalas com suas dores, seus amores, seus desejos e sua revolta, o samba se tornou um dos grandes representantes da cultura brasileira, sendo um dos principais responsáveis pela identidade nacional.
De acordo com o estudioso da cultura popular brasileira Roque Souza, o samba nasceu da necessidade dos negros brasileiros. Abolida a a escravidão, um ritmo próprio estava na “hora de se soltar, de mostrar sua alegria”. Assim, “mesmo perseguidos pela polícia e atingidos em cheio pelo preconceito de uma elite voltada para a Europa, os ex-escravos criaram sua própria cultura, que é a força motriz de nossa cultura popular, para resistir à opressão”.
De qualquer forma, acentua Railidia, “o samba se impõe por ser essa potência cultural. Mesmo invisibilizado na maioria das suas expressões, ele resiste. É importantíssimo ter o Dia Nacional do Samba porque, em um esforço concentrado, essas expressões se tornam notícia e movimentam a rotina cultural do País”.
Por ser um traço cultural popular, de matriz africana, os sambistas foram perseguidos e desprezados pela elite. “Os escravos não podiam ter instrumentos para realizar seus batuques. Então, começaram a utilizar os pés e as mãos – enfim, o corpo todo – para cantar suas dores e alegrias. Cantando e dançando, assim nasceu o samba de roda na Bahia, ainda no século 19”, diz Souza.
O samba tem raízes africanas, nos batuques, no lundu, no jongo, entre outros ritmos e danças – e com uma mistura de ritmos já nasceu diverso num país de dimensões continentais. A participação das mulheres foi essencial para a difusão da nova expressão cultural. Foi nas casas das “tias” – sendo a mais famosa a Tia Ciata – que os sambistas se reuniam para mostrar seus novos trabalhos. E os cantos foram surgindo.
O samba está presente em praticamente tudo o que veio depois, porque se enraizou nos corações e mentes dos morros e das favelas. Conquistou outras classes sociais com uma tentativa frustrada de embranquecimento. Tanto que Paulinho da Viola canta, em Argumento (1975): “Tá legal / Eu aceito o argumento / Mas não me altere o samba tanto assim / Olha que a rapaziada está sentindo a falta / De um cavaco, de um pandeiro ou de um tamborim”.
Muito embora seja sempre muito difícil fixar uma data para o surgimento de qualquer movimento cultural, o samba tem como marco inaugural o registro, em 1916, do primeiro samba com o nome de samba: Pelo Telefone, de Donga e Mauro de Almeida, que também foi o primeiro samba gravado, em 1917.
De acordo com Leci, “o samba, para ser aceito, teve que passar por um longo processo. Muitas vezes se moldou para cair no gosto das grandes gravadoras e do grande público. Mas o samba das comunidades, por exemplo, está fora da mídia”. Ela ressalta que, no Brasil, o desafio é ainda maior para a mulher negra – por ser “o segmento mais discriminado da população. Quando uma mulher negra resolve ser cantora, ela enfrenta muitos desafios a mais. Vivemos em uma sociedade dominada não só pelo racismo – mas pelo machismo também. No samba, não é diferente”.
Mas “chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor”, entoa Assis Valente em Brasil Pandeiro, composta especialmente para a cantora Carmen Miranda, em 1940. “Eu quero ver o Tio Sam tocar pandeiro para o mundo sambar / O Tio Sam está querendo conhecer a nossa batucada / Anda dizendo que o molho da baiana melhorou seu prato / Vai entrar no cuscuz, acarajé e abará / Na Casa Branca já dançou a batucada de ioiô, iaiá”. Bolsonaro e seus seguidores precisam ouvir essa canção do compositor baiano.