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Elder Vieira: As aventuras de Zé Amaro: O gás

Não sei se vocês lembram, mas Zé Amaro vivia de favor na casa de um amigo. Seu ''aposento'' era debaixo da escada, num vão dois de comprimento por um e meio de largura. O ponto mais alto do teto ficava a metro e meio do chão. O mais baixo, não dava meio. Seu endereço situava-se, pois, no que deveria ser uma despensa. Colchonete casca de cebola no chão, roupas amontoadas numa mala no canto baixo, ali ele dormia, fumava, lia, pensava e fodia.


 


Não trabalhava. Sua vida era um eterno expediente: almoço num amigo aqui, janta noutro ali, café acolá – pagava tudo isso com seu papo e simpatia. Homem culto, devorador de  jornais e livros de todo o tipo (filosofia, política, história, poesia de cordel, novela de putaria), exibia seu conhecimento sem a menor afetação. Exibia, não: brindava o ouvinte com informações e análises espantosamente acuradas.


 


Dona Dilma, decana da Biblioteca Municipal, se admirava da velocidade com que os livros emprestados a Amaro iam e vinham na semana. A primeira vez que o viu, dera adeus, pesarosa e antecipadamente resignada, ao Marx que lhe registrara no cartão da circulante. Dali a sete dias, olha o alemão de volta, devolvido em troca do genro Lafargue e da eterna gratidão da bibliotecária.


 


Depois do casamento, sem eira, nem beira, Amaro, mais Rosalina, se aboletou na casa dos sogros. Seu Adauto, major reformado, pai da nubente, ajeitou a edícula nos fundos do imóvel e lá instalou o casal. Não por gosto, arrumou trabalho pra Amaro no restaurante de um amigo. Prestou não: era comum encontrar o sujeito na adega, bêbo que só um gambá.


 


Após inúmeras tentativas, brigas, ameaças de morte e suicídio, major Adauto desistiu e setenciou:


 


– Agaranto o rancho de minha filha. O seu, vá caçar onde comer.


 


– Mas, Major, não faça um injustiça destas. Não vê que é pecado deixar um alguém assim passar fome? – interpelou, jeitoso, Amaro. Todavia, sem resultado.


 


Diante da máscara impassível do sogro, resolveu negociar:


 


– Major seu Adauto, façamos, então, o seguinte: eu pago a conta do gás, o senhor dá de comer à sua filha e eu fico com uma refeição.


 


– Como é? E vossência vai pagar o gás com o quê? Bufa?


 


– Isso já é um outro assunto, seu Adauto. Não vamos misturar as coisas. Pago o gás e comemos eu mais Rosalina.


 


O militar mediu Amaro de alto a baixo. Meditou, meditou. Concluiu que estava prestes a fazer um mau negócio, mas não tinha jeito: a menina escolheu esse traste pra marido, que remédio?


 


– Marialva.


 


– Nhô?


 


– Vá buscar a conta de gás e entregue aqui a esse meu genro. A partir de hoje, o assunto é com ele.


 


– Oxente, e ainda não pagaram esse mês não, é? – inquiriu Amaro.


 


Seu Major voltou a medir o cidadão. Catou a conta da mão da empregada e a entregou ao cujo.


 


– Marialva.


 


– Nhô?


 


– A partir de amanhã só sirva a esse meu genro o café da manhã.


 


Amaro se indignou:


 


– Como é, home? E o Estado democrático de direito, fica aonde? Um cristão não pode escolher nem o de comer não, é?


 


– Café da manhã: pão com manteiga, café com leite e uma fruta – ordenou o Major seu Adauto, pai de Rosalina, senhor daqueles domínios.