Vestido de noiva, como sabemos, foi um marco na história do teatro brasileiro e fez de seu autor, Nelson Rodrigues, um dos dramaturgos mais instigantes e incomuns desse nosso continente. A partir de então, seguiram-se outros textos, sempre com
Publicado 30/11/2006 18:31 | Editado 13/12/2019 03:30
Segundo afirmou certa vez o próprio Nelson Rodrigues, seu objetivo era produzir um “teatro desagradável”; criar “peças desagradáveis”, “obras pestilentas”, capazes de “produzir o tifo e a malária na platéia”. Como se vê, sua crítica dirigia-se sobretudo contra o “bom gosto pequeno-burguês” e a “unanimidade burra”; sua meta era escandalizar moralmente a platéia acomodada e presa a regras de conduta hipócritas. Desse modo, ele acabou criando novos gêneros, difíceis de serem compreendidos num primeiro momento, tais como “tragédia carioca”, “farsa irresponsável” ou “tragédia de costumes”, misturando sem quaisquer cerimônias, o drama, a comédia, a farsa e a tragédia, mas muito eficazes para exibir as pústulas da sociedade.
Sua experiência jornalística teve importância fundamental na escolha de temas sensacionalistas que, acrescidos de lirismo, ganharam força e qualidade literária. As caricaturas grotescas subjacentes à maioria de suas cenas e a exposição quase cruel dos conflitos vivenciados pelos seus personagens conferiram-lhe um estilo inconfundível. Soube como ninguém representar a figura do canalha, do cafajeste, do cínico, tão cotidianamente presente na história contemporânea de nosso país; pois basta uma olhada nos jornais diários para nos defrontarmos com pilantras e vigaristas cheios de empáfia em todos os setores da vida social, sobretudo entre as classes dirigentes.
O jogo de oscilações entre verdade e mentira, entre sinceridade e fingimento, entre retidão e infâmia, entre honestidade e trapaça, levado ao seu ponto mais extremo, cria uma atmosfera ambígua fazendo com que o leitor/espectador passe a ver a realidade como uma ficção enganadora, tal como uma novela de TV ou as declarações de um político corrupto defendendo-se contra “falsas” acusações. Basta lembrar do Peixoto e do Dr. Werneck de Bonitinha, mas ordinária, do Tio Raul de Perdoa-me por me traíres ou do Patrício de Toda nudez será castigada.
Um humor macabro, mórbido, perpassa grande parte das situações sórdidas vividas por seus personagens, muitas delas tão engraçadas quanto queimar um índio e justificar-se dizendo: “Foi mal. Pensei que era um mendigo!”, ou desviar milhões dos cofres públicos através de ganhos lotéricos fraudulentos e afirmar convictamente: “Deus me ajudou!”, ou ser flagrado vendendo o próprio voto no Congresso e desculpar-se com um “Minha mulher está rezando para eu sair desta enrascada”, ou … Bem, infelizmente a lista de exemplos seria extensa e citá-los todos ultrapassaria nossa capacidade de nos indignarmos…
Enfim, muitos dos temas de Nelson Rodrigues continuam fazendo parte do universo de referências político-sociais de todo brasileiro: a moral hipócrita, o descalabro na vida pública, a falta de solidariedade, a predisposição ampla e irrestrita à corrupção, os escândalos nossos de cada dia, a inadimplência ética divulgada em suas várias modalidades pela imprensa que, por sua vez, está comprometida até o pescoço com toda sorte de tráfico de influências da pior espécie, sem falar no incesto e nas tragédias farsescas desencadeadas pelo instinto sexual reprimido. Que essa realidade pestilenta não faça sucumbir ao pessimismo crônico, afinal temos ainda um presidente tipo exportação com garantia até a copa de 2002, mesmo que rodeado por personagens rodrigueanos.
Para muitos, Nelson Rodrigues não passou de um apologista do individualismo ou de um reacionário inveterado, sobretudo em função de seus posicionamentos políticos quase sempre contraditórios, mas a contundência de suas críticas à sem-vergonhice nacional pode ser medida pela reação de um vereador, ao final da apresentação de Perdoa-me por me traíres, no Teatro Municipal do Rio de janeiro, em 1956: ajeitando a carapuça, ele sacou, raivoso, um revólver e de seu camarote ameaçou todo o elenco, confundindo infantilmente neste gesto insano o teatro com a vida como ela é…