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Publicado 21/11/2006 20:30 | Editado 13/12/2019 03:30
Minhas mãos sempre foram afeitas
à terra
a esse singular ofício
dos que fecundam e acompanham
a gravidez das covas rasas
para delas tirar seu sustento
parco e miserável
Os oceanos e os grandes rios
criaram-se distantes de mim
um murmúrio longínquo
suas vozes apenas adivinhadas
pelos meus sonhos de menino
Natural que entendesse pouco
do fazer dos peixes
e nada conhecesse sobre correntezas
nem cardumes
Mas quando tu chegaste
quando me foste a oferta que eu não mais esperava
quando tu vieste como a concha aflita
o casulo ansioso por se fazer asa e cor
eu soube que meu tempo de terra
havia cessado
Era necessário que agora eu aprendesse
os deveres da marinhagem
que minhas mãos rudes de cactos e cascavéis
soubessem a textura das algas
e o canto maleável dos homens do mar
Quando tu chegaste
quando me foste o convite doce e sereno
quando o teu peito arfante me foi dado
como uma nova casa
quando teu ventre morno e branco se fez
travesseiro do meu cansaço
eu soube que meu tempo de terra
havia cessado
As águas dos rios e seu caminho milenar para o mar aberto
disseram-me chegado
o tempo da carpintaria e dos novos olfatos
e pus-me a construir um barco com minhas mãos de terra
e a aprender contigo a navegação eterna
longe dos portos e das luzes
apenas nossa bandeira a tremular
aprendizes do vento, das águas, e das suas vontades