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Leia a íntegra da crítica da revista Cahiers du Cinéma sobre Bacurau

A tradicional Cahiers du Cinéma – que sustentou o movimento nouvelle vague nos anos 50 e 60 do século 20 – continua como a publicação mais importante no mundo sobre cinema. Na edição de setembro, a revista francesa publica várias matérias sobre o cinema brasileiro, com destaque para a produção pernambucana. O Prosa, Poesia e Arte apresenta o trecho sobre Bacurau que abre o editorial e, em seguida, a íntegra da principal crítica da edição sobre o filme. A tradução é de Celso Marconi*. Confira!

Cahiers du Cinema
Editorial – Cahiers du Cinéma (trecho de abertura)

Por Stéphane Delorme

A volta ao cinema é iluminada por Bacurau de Kleber Mendonça Filho, fábula e modelo explosivo contra forças de destruição massivas. No momento em que o cinema brasileiro é um dos mais férteis (Gabriel e a Montanha, Aquarius, As Boas Maneiras), ele se encontra ameaçado pela ofensiva reacionária e retrógrada de Bolsonaro… Nossa enquete com alguns cineastas revelou mais inquietude do que energia para reagir…

Crítica: Vila global

Por Camille Bui

A gente se lembra de Sônia Braga, ao fim de Aquarius, colocando um ninho de cupim no escritório do empresário imobiliário, mafioso que tentou mudar sua opinião pelos piores meios. O último gesto de resistência da personagem era também o do filme que, em certa ocasião, se aproximou de um registro mais próximo do cinema de gênero que do retrato de mulher que ele havia desenvolvido até então.

Já no Som ao Redor, a antropologia urbana reencontrou a angústia do thriller. E é este nó fecundo – através do qual se entrelaçam sátira política e ficção popular – que Kleber Mendonça Filho continua apresentando em seu terceiro longa-metragem, Bacurau, codirigido com Juliano Dornelles, diretor artístico de seus filmes anteriores. Seguindo a ideologia da conquista do Oeste, Bacurau reorienta a energia vingativa e agradável do western tomando por alvo a América do capitalismo devorador e do fascismo rastejante.

Dois relatos no mundo se chocam na guerra entre os habitantes de Bacurau, uma pequena cidade no interior do Nordeste do Brasil, e seus inimigos, a princípio invisíveis, que são esses americanos loucos no espaço. Por um lado, os habitantes de Bacurau se misturam com a paisagem vegetal e mineral. O visual é para eles à altura do homem – e mulheres para abraçar o ambiente cotidiano a partir das ações e gestos de cada um, em uma circulação fluida: da escola para a sala, da rua para o supermercado, da entrada da cidadezinha para a praça comum.

O território de Bacurau é visto como um bem público, uma ameaça de desaparecimento pela loucura privada de políticos corruptos e paramilitares americanos. A relação dos estrangeiros com essa terra, mesmo que sejam ridículos prefeitos da região, norte-americanos ou brasileiros do Sudeste, é, ao contrário, marcada pela predação, distância geográfica, afetiva, cultural, ótica, que se reduz a um ato de destruição, seja direto – por bala –, seja indireto – pela utilização de recursos vitais e, em particular, a água.

Há uma encarnação paroxística desse sadismo cartográfico: a retirada da pequena cidade do mapa cartográfico da região, descoberto pelo mestre da escola incrédulo e seus alunos durante uma lição de geografia – e, mais ainda, as vistas aéreas tomadas pelo drone distópico, que sobrevoa Bacurau e deixa ver os humanos do alto, como um simples jogador a abater.

Para Mendonça Filho e Dornelles, o sertão está, então, longe de ser um décor folclórico para a ação dos seus protagonistas: eles pretendem, com um mesmo gesto, dar destaque à geografia e à sociabilidade, nos dois regimes espaciais – habitar ou conquistar –, correspondendo aí as maneiras de criar grupos em si antagônicos. Os planos sobre o cortejo funerário de Carmelita, a matriarca negra, dá a reconhecer com força, desde a abertura do filme, a comunidade de Bacurau como um todo unido. Um todo unido num mesmo quadro, ouvindo nos sons da mesma canção, mas que foram compostos com o heterogêneo: de corpos, de rostos, de cores de peles, de idades, de gêneros.

Sempre ao longo do filme e até a reluzente sequência final, de impressionante plano de conjunto, vem reafirmar a existência insistente desse coletivo, que se revela progressivamente como a verdadeira personagem de Bacurau: sorte de entidade múltipla no seio da qual o ponto de vista do filme se movimenta, de um indivíduo ou de um pequeno grupo a um outro. Quando estamos então ao lado de Teresa, vinda do Recife para enterrar a avó, rapidamente o foco se multiplica por nós, saindo dos outros habitantes, de Plínio, o professor da cidadezinha, a Lunga, esse bandido que deixará a clandestinidade para organizar a resistência armada.


Para a Cahiers du Cinéma, Bacurau “reorienta a energia vingativa e agradável do western”

Em torno desse pequeno círculo solidário, o grupo dos Estados-união se constitui então mais fortemente como um puro agregado de circunstância e de interesses: cada um terá seu momento de “caça” e traçará sua própria rota mortífera. Eis uma sequência seguida visualmente de maneira angustiante, a confrontação entre as duas maneiras de ser no mundo: uma, luminosa, unida e aberta para fora; a outra, solitária, deletável, seguindo na obscuridade.

As crianças de Bacurau jogam para fazer medo, escondidas no negro que encobre a vila na noite caída, uma tocha nas mãos. A montagem alterna então entre o campo de visão das crianças que avançam na obscuridade e o contracampo, um olhar escondido no negro pelo qual as mesmas crianças são pontos luminosos e silhuetas se decupando sobre o fundo da luz calorosa da vila. Esse reencontro entre a luz e a obscuridade se torna horror quando a sombra engole uma das crianças abatida por um sniper, em que o medo verdadeiro se substitui ao faz-de-conta do jogo infantil.

Mas uma das possibilidades que a mise en scène tem na sua capacidade de construir com grande naturalidade uma metáfora política do Brasil atual, com sua força luminosa e obscura, mesmo sem fugir ao risco – narrativo e ideológico – do excedente significativo e do simplismo binário. Isso tem a ver com a maneira como os cineastas ajustam aos personagens de dois campos uma mesma espessura, uma larga nuance de encarnação com atores especialmente carismáticos: do lado de Bacurau, Sônia Braga como médica, figura destacada da vila, sábia na sua loucura; do outro, Udo Kier em grande forma, mercenário orquestrador de olhar cintilante.

Uma vez aberto esse olhar alternativo no grupo inimigo, o filme não abandonará jamais os ‘mercenários’ a uma essencialidade abstrata, deixando-nos ver por um momento no olhar insustentável dos exterminadores. Mas essas incursões do lado do inimigo não revelam jamais em Bacurau nem um julgamento obsceno nem uma explicação política duvidosa: eles não fazem senão reforçar a fuga inquietante da incompreensibilidade e ativar nossa empatia pela resistência necessária. Por essa representação do mal, às vezes concreta, outras humana e inexplicada, outras com o ar inumano, o filme ultrapassa a simples denúncia analítica de um estado do mundo, para fazer ressaltar com frisson a profunda confusão da ameaça fascista que eclode depois de alguns anos.


Sônia Braga, assim como Udo Kier, lidera o elenco especialmente carismático de Bacurau
Em face do horror, se a comunidade rural de Bacurau é tão bela, é que ela não tem nada de fantasma resistente – ela parece mais participar de uma versão alternativa do presente ou de uma utopia possível. Porque, de um lado, o filme faz numerosas referências à cultura popular nordestina, seguindo até aparecer o personagem mítico do cangaceiro, o bandido do sertão, que se lança com mão-forte à resistência de Bacurau, ou faz encarnar a mais velha da vila, a Lia de Itamaracá, figura maior da música popular de Pernambuco, já presente no curta-metragem Recife Frio, de Mendonça Filho. Mas também não se trata jamais da parte do cineasta de jogar sobre o registro de uma identidade conservadora ou do mito da “democracia racial” brasileira.

À imagem da heterogeneidade ética e cultural da cidadezinha, o filme trabalha para pôr em movimento símbolos tradicionais, já afiliados a lutas de resistência, juntando-os a outras formas, outros pensamentos, vindos claramente do thriller ou do horror sanguinário, da crítica feminista e pós-colonial, ainda da ficção científica e de suas invenções tecnológicas. Na trilha sonora de Bacurau, essa temporalidade portadora de um passado popular de certa forma avança sobre o presente, fazendo possível o reencontro de Caetano Veloso e de John Carpenter com a música dos irmãos Mateus Alves e Tomaz Alves Souza, que cruzam eles mesmos os ritmos brasileiros e os sons eletrônicos.´

É, portanto, mais pela sua audácia estética e menos pela construção da obra que Bacurau dá forma a um ideal que se ergue de maneira agressiva contra a ideologia dos tempos de Bolsonaro ou de Trump: o ideal democrático de uma sociedade em movimento, construída por múltiplos e se alimentando por uma história de resistência política e cultural – afro-brasileira, mulheres, camponeses, povos indígenas –, mais que herdeiros de conquistas violentas, do fascismo e do patriarcado. Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles assinam com Bacurau uma grande ficção política na qual a vitalidade à toda prova é uma virtude necessária para enfrentar a monstruosidade bem real da extrema direita contemporânea.

* Celso Marconi, 89 anos, é crítico de cinema, referência para os estudantes do Recife na ditadura e para o cinema Super-8. É colaborador do Prosa, Poesia e Arte.