Uma das tatuadoras que conheci tem boa parte do corpo preenchido por desenhos de traços bem diferentes, mas que formam uma composição única. Ela me disse que nenhuma daquelas imagens conta alguma história; cada uma está em seu corpo apenas pela escolha do belo. Ela quis o bonito em si – e isso já seria o suficiente para ter as tatuagens que lhe marcam.
Publicado 16/01/2020 18:49
Também escolhi marcar meu corpo com o bonito, apesar do tempo – ou, justamente, porque houve tempo para viver o que vivi. As tatuagens que tenho são parte da vida que eu refaço eterna. Entendo o eterno como uma contínua transformação, o refazer. Olhar de outra forma, guardar permanências, essencialmente, salvar o belo.
Assim, decidi, uma por uma, as dez tatuagens que tenho hoje: “palavra”, “sentimento”, “fé”, “ágape”, uma libélula que se transforma em “coragem”, um trecho da Oração de São Francisco, uma arruda, o fundo do mar de aquário, uma flor estrela, um beija-flor. São marcas do que se foi e algum entendimento que eu preciso ter. Nós, mulheres, escrevemos nossas histórias na pele: nos machucados, nas cicatrizes, nas rugas, no parir…
Fiz minha primeira tatuagem aos 44 anos. Fui criticada e experimentei o preconceito. Mas aí já havia chegado o meu tempo da descoberta do corpo e do “dane-se” (para não escrever aquele outro imperativo). Não ligo a mínima; “meu corpo, minha vida” (ou “minhas regras”, ou “meu texto”…) passou a ser meu pensamento agora, depois de tanto pensar o que os outros pensavam. E essa descoberta é tão libertadora quanto maravilhosa.
As tatuagens fizeram com que eu olhasse mais para mim; um período para a cicatrização, depois de vencer a dor de cada corte na pele. São, reitero, capítulos do que enfrentei e, principalmente, salvei. E, por extensão, as marcas fizeram com que eu gostasse mais de mim; sou dessas, de ter amor próprio, mesmo que seja um contrato de risco. Também foi preciso que eu me entregasse ao tempo dos cuidados, para tudo cicatrizar. Assim na pele como na vida.
Além da beleza de cada traço e do manifesto subliminar – eu tatuo com mulheres (#tatuecomumagarota) -, minhas tatuagens são marcas de 2019. Um ano muito difícil, de despedidas muito profundas porque deixei algumas crenças no passado, para seguir em frente. Dia a dia, tive que converter um acreditar em outro e, por fim, nascer outra vez. As tatuagens que fiz contam sobre esse resgate em meio aos escombros de tudo. Sobrevivi, ou melhor, vivo para me reescrever.
Feliz ano novo a cada leitora e leitor do blog Ana dos Suspiros.
Paz e bem,
Abraços daqui,
Ana Mary C. Cavalcante é jornalista e professora universitária.
Fonte: Blog Ana dos Suspiros