Um diário inquieto que mistura memória, dor, amor e indignação, buscando na escrita as peças que faltam para entender a si mesmo e o mundo ao redor.
Publicado 05/05/2025 16:48 | Editado 05/05/2025 16:49
O filho da costureira e do sapateiro escreve um diário aberto — não como As Veias Abertas da América Latina, de Galeano, mas próximas das pinturas de Frida, que, ao falar de si, falava do mundo. “Nunca pintei sonhos, só pintei a minha própria realidade”, dizia Frida Kahlo, temperada pelo seu tempo e pelas doses dos seus suspiros.
As realidades são distintas. Dores maiores ou menores não existem: existem dores. O filho da costureira e do sapateiro codifica em palavras espremidas como rupturas da vida; canto e grito se misturam, óleo e água se enfrentam. As borboletas se transformam em esperança em alguns momentos, porque nem tudo é tristeza.
Segundo a moça que encontra todas as quartas-feiras, por meia hora, numa sala de meia-luz e com um sofá confortável, “existe uma solução para tudo”.
O filho da costureira e do sapateiro descreve passagens e personagens que se encontram na encruzilhada dos seus percursos. Seus medos, seus gozos e os intervalos não vividos são escritos — não cabem dentro de si.
A flor vista apenas uma vez e a água do rio, que nunca é a mesma, entranha-se nas entrelinhas. Narros fôlegos e pedidos de socorro.
Escrevo manifestos e panfletos; hora ou outra, jogo poesia no redemoinho. Sou panfletário, incendiário, dramático — menos que a vida. Escrevo para criar desordem nos pensamentos e reordenar o olhar.
Falo das folhas das árvores que estão em frente à minha varanda e falo das crianças mutiladas da Palestina, que seguram seus olhos nas mãos. Pronuncio as noites molhadas de prazer e as noites em que me embolei na impaciência no fundo da rede, sem conseguir sonhar.
Junto às angústias e às indignações num balde de roupas sujas, para lavar na subjetividade das palavras. Não espere um escritor bem-comportado. Gosto de escrever com os dois pés em cima da cadeira: parte da cabeça a sete palmas do chão, e a outra brincando nas nuvens.
Desesperem-se: não há uma linha reta, nem histórias completas. A razão e a emoção correm juntas, às vezes uma sobre a outra. Estendo um tecido de fragmentos, um quebra-cabeça que não peço para montar — faltarão peças. Por isso escrevo: porque faltam peças.
O filho da costureira e do sapateiro é o mesmo que, aos oito anos, fugia da escola e, aos cochilos, após a primeira a comunhão, bebe cachaça escondida embaixo da pia de lavar roupa. Que provou do fogo e das queimaduras, que correu sobre o telhado quebrando as telhas, que sonhou em voar quando era criança e andou de carona nos vagões dos trens, fez castelos de terra e rochas de gesso. É o mesmo que se sentiu sozinho nas noites mais movimentadas e que viu a desnutrição da renda neste mundo capital. É o menino que amou intensamente e logo descobriu que o amor é cheio de interrupções. O filho da costureira e do sapateiro joga pedaços de sua história num caldeirão cheio de outras narrativas, mas sem se conformar com escritas pré-moldadas.
A costureira e o sapateiro têm um filho que ainda precisa de abraços para escrever outros livros.