Ossos do ofício poético de Ana Marta Cattani

Com poesia intensa e refinada, Ana Marta Cattani transforma dor, corpo e referências literárias em um livro vibrante, provocador e profundamente original.

Ana Marta segurando seu livro "Tutano" | Foto: divulgação

Tem uns meses, estabeleci contato com Tutano, obra poética de 76 páginas de Ana Marta Cattani, escritora, advogada, fundadora da Capivara Cultural, instituto dedicado à Literatura. Fiquei besta. Vai escrever bem assim ao sopé do Olimpo!

Publicado em 2023 pela Laranja Original, Tutano, todo medula, é orgânico: um organismo vivo cônscio dos achaques, seus e do mundo.

O livro abre com o poema “Feliz Aniversário”. O título é o mesmo de um dos contos de Clarice Lispector publicado em seu livro Laços de Família. O primeiro verso de Cattani é: “no dia em que completei 8 anos Clarice morreu”.

O que pretende Cattani, ao filiar o poema introdutório de Tutano ao conto de Clarice? Suspeito de que intente: 1. estabelecer relação de cumplicidade literária com a contista; 2. mais que literariamente, vincular dores, porque delas nascem, tanto o que narra Clarice, quanto os versos de Ana Marta.

Ossos doem – adoecidos ou não. É neles, em suas medulas, que sentimos o mundo e a cada um de nós. Clarice é visceral a ponto de sentir-se no osso; na medula, que é a víscera do osso – e nada é mais visceral, íntimo, fundo, num corpo, do que a medula óssea. E veja: um adulto sustenta-se em 206 ossos; 206 peças articuladas, todas com… tutano.

O mundo começa, para nós, na pele, e termina no osso, onde jaz a mais íntima, por vezes inconsciente memória? Ou principia no imo de cada osso e toma o entorno? Difícil saber.

O que sabemos é que a poeta segue a trilha clariceana da frase insólita, inusitada – que, inadvertidamente, aparece-nos no correr da leitura – em algum ponto da picada – e nos prega, por inadvertidos, distraídos, daqueles pequenos sustos; por força do estranhamento que provoca, espanta e… como não dizer?… encanta (mesmo que doa).

Há uma forte dose de perversão em Tutano. A dor que o atravessa inteiro tem seus requintes de prazer sádico. Como no poema “Terapêutica”:

“entre a massagem e a morte
a diferença é a pressão do toque”.

Ou como em “Classificados”, que reitera a crueldade sádica e lilitheana já praticada em clavículas e costelas do poema “Fole”:

Em “Classificados”:

“Precisa-se de um homem no vão da escada
(…)
um homem para enfiar minha mão
entre suas costelas”.

Agora, vejam “Fole”:

“se eu deslizasse a mão sobre o teu ombro, encaixasse
pouco a pouco os dedos no minúsculo espaço entre o
escaleno e a cartilagem da tua primeira costela. minha
mão incrustada na geometria exata da tua clavícula como
pedrinha no mosaico. ah, tudo isso e ainda a tua respiração”.

De onde, tamanha perversão. Das leituras de Clarice? Das dores personalíssimas da poeta? De Rimbaud?

O poeta francês é primeira vez referido no livro em “Poema para os teus ossos”. Nessa peça, aparece, também pela primeira vez, a palavra “tutano”. Rimbaud surge sob o prenome de batismo, Jean-Nicolas, e será confirmado alter ego da poeta, ou voz poética de todo o livro, no derradeiro poema, “Rimbaud”. Os ossos de “Poema para os teus ossos” são do poeta, e, nele, fica evidenciado a filiação de Cattani ao enfant terrible da literatura:

“meu reumatologista disse que
esse tecido líquido-gelatinoso
em minhas cavidades
é o teu tutano


recomendou
repouso”.

As referências não param, todavia, em Rimbaud e Clarice. Em diferentes versos, encontramos Lygia Fagundes Teles, seu romance As Meninas, e o Monstro do Lago Ness; Aquiles e seu calcanhar –  dispositivo anatômico ausente em sereias; Adão e Eva das costelas bíblicas; João Batista, Salomé, Medusa e a guilhotina; o lavapés de Cristo; Eros e Tânatos para todo lado; Sócrates e Aristófanes, e, de quebra, o poeta Bandeira; Ada Lovelace, filha do poeta inglês Byron, primeira programadora computacional da história; Bono Vox, do conjunto musical irlandês U2, e a composição Everlasting Love por ele regravada; cavalo de príncipe encantado figurado em Corcel 73 do Raul Seixas, mais Vaca Estrela e Boi Fubá; as poetas confessionais estadunidenses Sylvia Platt e Anne Sexton; licantropia, e o bailarino Mikhail Baryshnikov, que dá o seu prenome a um lobo-guará; o filme Pixote, de Hector Babenco.

Ana Marta Cattani

Além destas referências, há a profusão de termos anatomofisiológicos, em chave científica ou vulgar, e cultismos, que irrecusavelmente nos remetem ao pré-modernista Augusto dos Anjos, poeta também visceral, medular, obcecado pelas perversões nos organismos vivos…

Tutano é, todo, intertextualidade. Por meio dela, Cattani demonstra vasta erudição e nos brinda com um subliminar e encantador almanaque lírico, responsável, em grande medida, pelos sustos instantes que nos assaltam a cada peça lida. Por intermédio deste recurso, a poeta esparge relíquias em forma de fragmentos de ossos pelo caminho, fazendo-nos, a um só tempo, paleontólogos e devotos.

Termino dizendo que Ana Marta Cattani reinventa, no século XXI, a modernidade – essa linha que radica lá na Renascença, entronca-se na Ilustração, enflora no século XIX e irradia-se na centúria seguinte, numa explosão de experimentos e revoluções – estéticas e sociais.

Exagero? Talvez, embora não creia. De qualquer forma, um pouco de intensidade, nestes tempos insossos, sabe-me bem – assim como os versos de Ana Marta Cattani.

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