Quatro poemas de Marcia Tigani

Leia “Ode ao Capitalista”, “Cinerário”, “Perseidas” e “A Tempestade”

Marcia Tigani, poeta e psiquiatra paulistana, que hoje reside em São José dos Campos, é uma autora de lírica contundente, ou, como diria João Cabral de Melo Neto, “uma faca só lâmina”. Com domínio impecável na escolha e combinação das palavras em linhas ásperas, de imagens fortes e ritmo bem marcado, ela desenha imagens alegóricas de nossa triste época, em que a banalidade e a violência se impõem. Autora de livros como Os Olhos de Kali, Marcia Tigani é uma autora que faz a diferença e merece ser lida com muita atenção.

ODE AO CAPITALISTA

Eu te saúdo, saúva
ó chupim, ó idólatra
bunda-mole, snob
saúdo-te, gabola!

Eu te saúdo, capital
prazeres somente na mesa
viagra no bolso, panaca
jabá em paraíso fiscal.

Eu te saúdo, sugadouro
voyeur capitalista
cédulas como fetiche
bandeira à meio pau

Eu te saúdo, ciclope
olho gordo no vil metal
erotismo de fora, asséptico
amor à CDB, RDB, não sei o quê!

Eu te saúdo, patranha
Deus, pátria, família
saúdo tua única verdade:
ser droite, ser droite …

CINERÁRIO

Para Marielle Franco

Morrer sem grito
cingida e inerte
liturgia de árvore
quase infinita.

Sibila a voz, o canto
a arritmia
vida salga a carne
e a fagocita.

Morrer sem mistério
ou exantema.

Silenciada resina
que viscosa adere
à pele e escorre fria
e lateja em sina
como a mão que a fere

Matar a palavra úmida
que da boca verte.

Matar a infância, o verso
 o riso.

Matar a ideia, a pedra
o signo.

Matar a estrada
luz em exercício

Viver para relembrar
a terra, as cinzas
o que ainda sobra
do caule esmigalhado.

Viver para contar
a geométrica forma
da ausência, ou o grito
espesso do amor silenciado.

PERSEIDAS

  I

Sou estrangeira
em minha própria terra
estrelas cadentes
sobre meus cabelos.

Poeira cósmica
a luzir em minhas órbitas
sou a estranha deitada
sobre pedra gris.

Contemplo o reverso
da ideia do existir.

  II

Um sonho acordado
é um dejá-vù
crivado de imagens
ígneas e obscuras

Meu corpo sobre a pedra
fósseis sob minha pele
existo como islamita:
sou rocha bruta
e paleta de cromo

 III

Se por mero acaso
Ou telepatia pura
Quisesses entender
A ionosfera

Ou a Constelação de Aquário
verias um opérculo
luzidio na vereda
do meu decote.

O calcáreo
a tintura de ópio
ou lêmure voador:
são partes do meu eu

 IV

Se Mefistófeles
falasse em iídiche
o estridor de sua voz
mataria pomos.

Flores, luzes
Buscaria a mim
 a islamita)
arrancaria meus rizomas
sem anestesia:

Na olaria do ódio
não há estrelas cadentes

A TEMPESTADE

Lapso de tempo-luz
relâmpago fugaz:
plenitude

Adocicado odor
de cravos na janela:
harmonia

Vida em segundos
suprema paz na Terra
memórias.

Dèjá-vu, jamais
cristais pendurados brilham
felicidade revisitada.

Universo inteiro na retina
passa em revoada:
 pássaro cintilante.

No exílio, na neve
mastigar balas de goma:
um banquete.

Grande mal abraça
o corpo franzino
do prisioneiro.

A liberdade é prata
na branquitude infinita
da Sibéria.

Riscos caleidoscópicos
multicoloridos e uma voz:
alucinação.

Vozes de mulheres
cântico gregoriano
epifania.

Deus está em sua órbita
Jesus tenta falar em vão
pela tua boca.

Nenhuma ode ou poema
apenas silêncio súbito
precede o terremoto.

Corpo ao chão, espástico
alva espuma escorre:
convulsão.

Membros retesados
mãos fechadas (em prece?)
salivação.

Dez anos de exílio
dez anos de solidão
degredo.

Crime e castigo
nas mãos trêmulas do autor
a revolução.

Autor