Poeta e engenheira, Nara Fontes estreia com lirismo vigoroso em Corte cego, obra que atravessa o sertão, os Andes e a desigualdade com força e sensibilidade
Publicado 02/06/2025 18:25
A poeta gaúcha Nara Fontes nasceu na cidade de Novo Hamburgo e reside atualmente em Brasília (DF). É engenheira civil e trabalhou na Caixa, onde coordena um projeto de leitura voltado aos aposentados da empresa. Nara Fontes integra o coletivo Celeiro Literário Brasiliense e tem poemas publicados em antologias, jornais e revistas literárias. Publicou neste ano o seu livro de estreia, Corte cego.
EM TRANSE
no horizonte
um olho de vidro
questiona a sorte
ronda morte e vida
o trágico festim
caatinga repete
severina fruição
dono de nada
nada de tudo
na pobreza sem fim
chorume veste
esquálido cortejo
caveiras em baile
homem-dejeto
de olhar-querubim
sertão resseca
sangra a vista
na tela resiste
tristeza desatino
e o sol carmesim
pés em pedaços
na trilha do ódio
só fome e sede
ao exército esquálido
não soa o clarim
em transe o dono
adorno negado
sem pátria sem chão
favela chancela
inocente estopim
em águas servidas
batiza-se o intruso:
pincel fere a tela
grita degredo
sangra desprezo
o cândido olho
anuncia o fim
(para Cândido Portinari – tela Os Retirantes)
RESENHA DA NOITE
passageira do verso
descubro a margem
da palavra solta
fugidia em sua trama
não descaso dela
persisto
no encalço
da ausência cifrada
ainda que a tenha
resenha da noite
refém de humores
limbo da imagem
não me dispo de medos
sou deles e os tenho
tempos me tomam
assomo ao nada
aceito o vazio
onde a inspiração
me evita
levita a alma
líquida e incerta
acordo e discordo
anoto e dispenso
repenso o inútil
reverso da pena
apresso o toque
apago a luz
do próximo poema
CANÇÃO PARA PUNO
moldada pelo vento
cordilheira exibe
ventre de cobre
e sal
vida e morte
espiam
no desfiladeiro
olhar instiga alma andeja
captura imagem andina
passos desafiam
o tempo
mãos tocam
o infinito
a llama inquieta
desperta
o vulcão extinto
no altiplano
preces quéchuas
trançam rosários
imagens
a colorir o ar
alma cativa
divindade esquecida
aos pés do deus sol
no rosto aimará
sopro da noite
às margens do lago
do junco de totora
coloridos matizes:
Ilhas de Uros
Titicaca
do lamento
lava espanto
tece tramas
de luas
para ser
outra vez
solo de incas
ECLUSA
cobre, manganês
sal e minerais
sobem o Pacífico
ganham o canal
no transporte da carga
gigantes encurvados
abre-se o lago
em bruto carteado
eclusa recusa o toque
água e ar misturados
geografia em movimento
a floresta observa
corredor de riquezas
lastro do consumo
perpetuam o desigual
na troca de hemisférios
caem fronteiras
no trânsito aflito
sul sem norte
morte na pista