Régis Bonvicino: Um encontro com João Cabral

Estava ansioso para encontrar-me com o primeiro “grande poeta de verdade” de minha vida, em janeiro de 1982, quando visitei, levado por um amigo comum, João Cabral de Melo Neto (1920-1999).

Eu conhecia poetas relevantes, mas estava ansioso para encontrar-me com o primeiro “grande poeta de verdade” de minha vida, em janeiro de 1982, quando visitei, levado por um amigo comum, João Cabral de Melo Neto (1920-1999). João mantinha no Rio de Janeiro um apartamento na Praia do Flamengo.

Seu primeiro posto no exterior, o de vice-cônsul em Barcelona (1947-1950), tornou-o o único brasileiro a participar de um movimento de renovação das artes na Europa, o Dau al set catalão, que contava, entre outros, com o mais jovem do que ele Antoni Tàpies, para quem ele servia de modelo, por aproximar a arte da questão social e política, por valorizar a dualidade homem e sua terra.

A certa altura, João afirmou que não gostava de ser chamado de poeta. Fiquei surpreso. O conflito parecia-me pertinente para alguém com 27 anos como eu. Mas não para ele. Apesar de contestado aqui e ali, João era considerado um grande poeta, o maior, ao lado de Carlos Drummond de Andrade. E ele prosseguiu contando: “Hoje, pela manhã, o porteiro do prédio me trouxe cartas e livros endereçados ao Poeta João Cabral de Melo Neto. Tenho vergonha de ser chamado de poeta”.

João havia sido posto em disponibilidade (uma espécie de demissão), pelo Ministério das Relações Exteriores, em 1954, acusado de subversão e, como se conta nos bastidores, implicitamente por ser exatamente um poeta. Ele retomou sua carreira por decisão do STF. Entretanto, isto não explica sua repulsa pelo substantivo poeta, associado ao romantismo, ao irrealismo e à trivialidade.

O autor de Museu de Tudo (1975) pensava a poesia como uma informação útil ao leitor, que mantivesse seu interesse sempre. Cabral é um objetivista. Aliás, sobre o tópico “poeta”, contou-me outra história: “Jânio Quadros cortou, no início dos anos 1950, todo tipo de subvenção ao Clube de Poesia de São Paulo. Bem mais tarde, perguntei por que havia feito isso. E ele respondeu, imitando a voz de Quadros: ‘Poeta subvencionado é mau poeta’”.

De repente, indagou-me se eu havia lido um livro, muito favorável, então recente, de um crítico pernambucano, a respeito de seu trabalho e qual era a minha opinião sobre ele. Calei-me. E ele me disse: “Eu não entendi nada. Não reconheci meu trabalho nas análises do livro; aliás, não entendo quase nada do que os críticos universitários escrevem sobre o que faço”. E completou: “Quem melhor escreveu sobre minha poesia foi o (poeta) Décio Pignatari, no ensaio ‘Situação atual da poesia no Brasil’. O termo ‘antropologia poética’, cunhado por ele, combina com a minha obra: a apreensão direta da realidade”.

Indaguei-lhe, em seguida, por que razão usara “câmara” – e não “câmera” – no poema Ademir da Guia: “Ademir impõe com seu jogo/ o ritmo do chumbo (e o peso)/ da lesma, da câmara lenta,/ do homem dentro do pesadelo”. Sua métrica é de oito sílabas, o metro reinventado por Cabral, que lhe serviu para se distanciar do verso livre modernista de Mário e Oswald de Andrade, poetas que pouco admirava. Respondeu-me “Porque câmara abrange câmera, é mais vasto”. E que o sentido do slow motion, usado nas transmissões de futebol pela TV, estava claro. João declarou-se palmeirense em São Paulo, para meu orgulho de palestrino roxo.

Perguntei-lhe, então, se ele achava que o Brasil iria ganhar a Copa, na Espanha (1982). João contraiu o rosto e afirmou: “O Brasil é um país que precisa de pessimismo, compreende? De muito pessimismo. O otimismo destrói o Brasil, em qualquer atividade”. E este foi um dos encontros que me fez, apesar de todas as adversidades, tentar ser um autor, e não um “poeta”.

Autor

Um comentario para "Régis Bonvicino: Um encontro com João Cabral"

  1. Máyda Zanirato disse:

    Nem era necessário a questão social constar do melhor talvez da sua poesia
    O simples poema ( não um poema simples!) O ovo da galinha já mostraria a qualidade do poeta que ele é.
    Quando sinto que passei muito tempo vendo poetas de internet, mesmo reconhecendo ter ali um ou outro que valha a pena – vou até ele, como quem vai a uma fonte não só beber, mas sobretudo, se banhar. Ou como quem busca algo como disciplina.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *