Leia uma amostra da criação poética de Claudio Daniel, colaborador do Prosa, Poesia e Arte
Publicado 20/12/2019 13:05 | Editado 20/12/2019 18:08
O Prosa, Poesia e Arte (seção cultural do Portal Vermelho) apresenta hoje seis poemas de Claudio Daniel, um de nossos principais colaboradores. Poeta, escritor, tradutor e ensaísta, Claudio é formado em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero, com mestrado e doutorado em Literatura Portuguesa pela USP, além de pós-doutorado em Teoria Literária pela UFMG. Confira uma amostra de sua criação poética.
*
CONVERSA SOBRE O BRASIL COM UM POETA CHINÊS
País tão sombrio –
como um arco-íris
negro;
como um cão
negro
e outros cães,
todos negros;
luz negra,
jade negro, pele negra,
sangue negro,
soldados
brancos e negros
que matam
negros,
uma, duas, três,
até oitenta vezes;
palavras escuras
secam na boca,
costurada;
nenhum pensamento
é possível
aqui,
só o telejornal
zumbi;
Em qual língua
é possível
expressar
este açougue
de carne humana?
Este é o relógio
do medo,
estes são os dez dedos
do medo
Há sobreviventes?
Uma palavra cai, duas,
três palavras, numa tigela
vazia.
Um rato é o nosso rei.
Relâmpago ilumina
flor mínima, no caminho
das antiflores.
*
A FALA DO OLHO
Não vejo mais
a flor
de pétalas
roxas
no canteiro
do jardim
nem a chuva
luminosa
dos dentes-
de leão.
Não vejo mais
o reflexo
da lua
na minúscula
gota d’água
no caule
da vagem
nem a cereja
vermelha.
Não vejo mais
a sombra
do ninho
de vespas
nem o rosto
do soldado
que me cegou
com balas
de borracha.
Agora
tenho apenas
o escuro fundo
dos céus
de tempestade
e a memória
de um raio
de luz
vermelha
como a vida.
*
CONFISSÕES DE UM CATADOR DE PAPEL
(Para Luciano Macedo)
Folhas amarelas
caem na calçada:
vento de outono.
Farol vermelho pisca
para carros cegos.
Revistas velhas,
folhas de jornal,
caixas de papelão:
recolho os resíduos
dos brancos e ricos
que desprezam
minha classe,
minha pele.
Numa tarde de sol,
assisti à incompreensível
cena de fuzilamento:
corri para socorrer
o ocupante do veículo
e também fui alvejado.
Agora, os brancos e ricos
podem dormir tranquilos:
há dois pobres a menos
no Rio de Janeiro.
*
2019
(Para Bao Dei)
Caminho
de um escuro
a outra treva
no esqueleto da noite.
Palavras são corvos invisíveis.
Tudo é silêncio
num tempo de desaparições.
Apenas no mercado negro
da memória
revisito as cenas
da triste comédia.
O relógio é mudo
as horas abolidas.
Vem, cavalo negro
da insanidade.
Borra o mapa de mim mesmo.
Listas negras
silêncio imposto
execuções nos campos
execuções nas ruas.
Jornais mentem como juízes.
Esta é a rosa dos corvos
companheiro Bao Dei.
Este é o reflexo sujo
da faca nas águas do rio.
Que venham os carrascos.
Que venham os açougueiros.
Nunca deixarei de rebelar-me
nem que seja neste poema
pesado como um navio.
Nunca deixarei de amar o meu amor.
Nesta noite imensa como um sanatório
soldados removem seus rostos
e mostram-se nadas de nada.
*
LUA DE MIM
(Para Scheila Sodré)
Lua-de-mim
amor-em-pele-de-oxum
moça-de-olhos-quase-céu
acende a palavra vermelha
no mais fundo de mim
sempre comigo sempre contigo
amor-em-pele-de-oxum
lua-olhos-lua-boca-lua-pele-lua-pés
no mais fundo de mim
anoitece-me enlouquece-me
moça-de-olhos-quase-céu
sempre comigo sempre contigo
Lua de mim
*
KITSUNI
(Para Alexia Bibi)
Raposinha pink fox singer —
olhos de girassol
olhos de giralua
a mais incrível
comedora de pizzas
da Vila Mariana.
Kawaii de-mil-e-um-talentos
inventa virtuais
lobos híbridos
com chifres de alce
e asas de falcão
no game do computador.
Bibi Blue Chan,
youtuber, desenhista,
que ama border collies,
raposas e unicórnios.
Só uma coisa incomoda
t-e-r-r-i-v-e-l-m-e-n-t-e
a cantora kitsune
com olhos de mangá:
levantar às seis
para a lição
de matemática:
hora de rebelião,
revolta, revolução.
Após a tempestade
e a volta para casa,
tudo se aquieta
com búrgueres
marshmallow
milkshakes
e corn flakes.