Publicado 16/05/2020 18:18
Num começo de noite de uma sexta-feira de 1979, o jornalista e poeta Rogaciano Leite Filho passou com seu Fiat 147 azul na casa de alguns amigos para dar carona para mais uma rodada de boemia e poesia no bar Estoril, em Fortaleza.
Entrei no pequeno carro, sentei-me no lado direito do banco traseiro completando a lotação. Não lembro exatamente quem mais, se na frente estava Antonio Rodrigues De Sousa, se atrás Geraldo Markan e Carlos Emílio Corrêa Lima… ou eram Natalício Barroso e Eugênio Leandro e na frente Batista De Lima? Não lembro quais dos PSC (poetas sem-carro) estavam lá.
A minha mais remota lembrança é que, logo após poucos minutos que o carro deu partida, ouvi um deles perguntar, surpreso, a Rogaciano, “para onde estamos indo?”, ao ver que ele pegava a direção da avenida Bezerra de Menezes, e o velho e bom Estoril fica do outro lado da cidade, na estreita rua Tabajaras, em frente ao marzão da Praia de Iracema.
Éramos ali cinco membros dos 24 poetas, contistas, romancistas e sonhadores integrantes do recém-criado Grupo Siriará de Literatura, todos eufóricos combatentes líricos do movimento de renovação estética e literária na virada de uma década pulsante, com o país ainda em convulsão político-social.
“Pegar o Airton”, respondeu Rogaciano, sem obter dos companheiros o questionamento onde ele sentaria naquele minúsculo 147 já entupido de poetas.
E seguimos em direção à Bezerra de Menezes. Todos conversando, antecipando algumas pontuações da revista que estávamos preparando e seria lançada na 31ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira Para o Progresso da Ciência – SBPC, que naquele ano teve a capital cearense como sede para o encontro.
Falávamos da seleção dos textos, da redação de um manifesto com as diretrizes do grupo etc etc etc. Falavam eles. Eu, calado estava, calado ouvia. Minha preocupação naquele momento não era a revista, SBPC ou quais poemas eu colocaria nas duas ou três páginas oferecidas a cada componente do grupo. Minha apreensão legítima, lúcida, óbvia, era saber onde o Airton iria, em colo de qual de nós três ali atrás sentaria!
Eu imaginava a trajetória até o Estoril, o fiatizinho serpenteando as calmas ruas de Fortaleza em direção à praia, com poetas saindo pelas portas, e tendo mais um debatedor cruzando opiniões – logo o Airton, que falava pelos cotovelos!
A imagem que me vinha espremido no banco detrás, daquele automóvel sem portas traseiras, era de um daqueles carros de desenho animado, abarrotado, as laterais estufadas, e os ocupantes com as cabeças de fora. E mais, fazendo analogias involuntárias, mas consequentes daquele meu drama: por uns segundos, olhei um por um dos quatro amigos e desliguei as falas. A cena em silêncio me fez lembrar a sequência do filme “Uma noite na Ópera”, clássica comédia de Sam Wood, de 1935, com os Irmãos Marx, em que várias pessoas vão entrando na pequena cabine do navio, e quando Grouxo abre a porta para a faxineira, diz “Melhor começar a lavar o teto, é o único lugar que não está ocupado”. Eu diria pro Airton, melhor ir no porta-malas, o único lugar desocupado.
E eis que chegamos à casa do último caroneiro. Lá vem Airton Monte, com seus óculos fundo de garrafa, seu bigode circunflexo de Rubem Braga, sua mochila de couro atravessada no peito. Entra e naturalmente me empurra para sentar-se onde eu já me espremia. Eu magro e robusto em timidez, calado estava, calado me comprimi, condensei-me como sardinha. Avanço um pouco pra frente e fico ali na ponta, com o braço apoiado no banco do Rogaciano.
“Gente, vocês precisam ouvir esse novo disco do Chico Buarque!”, começa Airton Monte, como um cumprimento de boa noite a todos. “É uma loucura! Um obra-prima! E tem uma música! Puta que pariu! Como é que um cara faz um letra dessa! O Chico é gênio! ‘Geni’! A letra de ‘Geni’ é poesia pra caralho!”
E pronto! Começou o entusiasmado Airton Monte a falar do disco “Ópera do Malandro” lançado naquela semana, com as composições do musical homônimo que Chico escreveu baseado e mesclando “Ópera dos mendigos”, de John Gay, do século 18, com “A ópera dos três vinténs”, revolucionária peça de Bertolt Brecht com música do compositor Kurt Weill, de 1928. Ambientada no Rio de Janeiro da década de 40, tendo como pano de fundo a legalidade do jogo, a prostituição e o contrabando, a peça estreou um 1978 com teatros lotados.
De repente acabou discussão sobre a revista, critérios e curadoria dos textos, SBPC… Nada mais da pauta improvisada a caminho da Bezerra de Menezes. E como que concretizando a cena muda que imaginei um pouco antes, todos “foram calados” ouvindo Airton Monte incontrolavelmente extasiado com o disco duplo de Chico Buarque.
Fixava-se em “Geni e o Zepelim”, última faixa do lado A do disco 2, a única interpretada sozinha pelo autor. Airton vibrava com os heptassílabos metrificados e rimados. “E também vai amiúde / co’os velhinhos sem saúde / e as viúvas sem porvir”, olha isso, gente! “Um enorme zepelim / pairou sobre os edifícios / abriu dois mil orifícios / com dois mil canhões assim”, detalhava, quase didaticamente. E sem pausa, Airton emendava nos fazendo “ver” o dirigível flutuando sobre o Fiat 147, nos seguindo em direção ao Estoril, tamanha sua descrição arrebatada. “E esses versos, esses versos”, bradava ao apresentar a personagem e a relação controversa de poder que ela detinha, “Acontece que a donzela / (e isso era segredo dela) / também tinha seus caprichos / e ao deitar com homem tão nobre / tão cheirando a brilho e a cobre / preferia amar com os bichos”.
A partir daí, Airton esquece Chico Buarque, autor, e começa a falar de Geni, personagem, da grande mulher que ela é e simboliza a objetificação e a condenação do corpo pela sociedade hipócrita.
E aqui, estimulo mais a memória e analiso o que Airton Monte quis nos dizer da personagem da música.
Geni era a personificação da grandiosidade da alma humana, a mulher que mesmo discriminada, agredida moral (“Ela dá pra qualquer um! / maldita Geni!”) e fisicamente (“Joga pedra na Geni / ela é feita pra apanhar! / ela é boa de cuspir!”), cheia de bondade salvou a cidade pronta pra virar geleia pela maldade do comandante do Zepelim. O poderoso por aquela formosa dama fora cativado, e que se naquela noite lhe servisse, partiria numa nuvem fria quando o dia amanhecer.
Geni, pensando no bem de todos da cidade, atendeu ao pedido do poder, representado pelo “prefeito de joelhos, o bispo de olhos vermelhos e o banqueiro com um milhão”. Eles que incitavam a população a apedrejá-la, agora seguiam em romaria, suplicando, “Você pode nos salvar / você vai nos redimir / você dá pra qualquer um / bendita Geni!”. E foi deitar com homem tão nobre, mas cheio taras. Geni dominou seu asco e se entregou a tal amante “como quem dá-se ao carrasco”. Ou faria isso ou o forasteiro do Zepelim explodiria a cidade, que lá de cima ele vira “tanto horror e iniquidade.”
O comandante do Zepelim estava certo quanto ao caráter daquela população. Era pior do que ele. Bastou o dirigível zarpar que “a cidade em cantoria / não deixou ela dormir”. Geni agora não tinha mais nenhuma utilidade. “Joga bosta na Geni! / ela é feita pra apanhar! /ela é boa de cuspir! / ela dá pra qualquer um! / maldita Geni!”.
O 147 chegou ao Estoril. Descemos calados, inclusive Airton. Estávamos subindo as curtas escadas da querida Vila Morena quando um de nós – não, não lembro quem – virou-se pro Airton Monte e disse: “Sabia que a Geni na verdade era Genivaldo?”
Airton deu de ombros e sorriu por baixo dos óculos e do bigode, como no poema de Drummond. E entramos para pedir as cervejas quentes aos garçons Baleia e Citonho.
Uma crônica de saudade para o grande cronista Airton Monte, que hoje faria 71 anos. Jogo flores pra ele.