A esperança vem das pessoas e da força dos trabalhadores*
I Fátima Viana
O ano de 2016 finda, finalmente, após ter dado início à interrupção dos 31 anos de redemocratização no país, o mais longo período de normalidade democrática na História da República brasileira.
Publicado 27/12/2016 20:12 | Editado 04/03/2020 17:06
O saldo do golpe de 1964 nunca foi devidamente apurado, nem reparado. O Estado brasileiro jamais conseguirá se redimir por ter condenado a tortura e morte centenas de jovens estudantes, advogados, professores, trabalhadores e até religiosos. Não há autocríticas suficientes pelo endividamento, pelos contratos de risco na área de petróleo; não há registro de autocrítica quanto a falta de acesso a bens artísticos e culturais pelos brasileiros e brasileiras, em função da repressão. Não se discute também o atraso na organização política da sociedade, advindo dos 21 anos de exceção e perseguição política aos militantes partidários, principalmente os militantes comunistas.
Felizmente, a reação social aos períodos de exceção, a luta por soberania e a luta por liberdade permitiram acúmulo de força política suficiente para derrotar a ditadura com a eleição de um presidente civil e dar início à redemocratização do país, com a eleição de uma assembleia nacional constituinte em 1986.
O poder constituinte original consagrou na carta de 1988, considerada uma das constituições mais avançadas da atualidade, o Estado Democrático de Direito, síntese histórica da luta nacional por democracia e liberdade.
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.
O pacto político, do qual resulta a constituição cidadã, é antes um compromisso, para romper com o autoritarismo, com a exclusão e com a dependência econômica do país frente às grandes economias.
A sociedade se compromete, pela nova Constituição Federal, a construir o desenvolvimento nacional de forma soberana, democrática, voltado a superar a exclusão secular e a garantir os direitos sociais para todos, conforme artigos transcritos abaixo.
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II – garantir o desenvolvimento nacional;
III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades
sociais e regionais;
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor,
idade e quaisquer outras formas de discriminação.
A nova carta vai mais além, dirige a sociedade para a transformação do
país numa pátria justa e sem preconceitos.
(…)
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
I – soberania nacional;
II – propriedade privada;
III – função social da propriedade;
IV – livre concorrência;
V – defesa do consumidor;
VI – defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado
conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos
de elaboração e prestação;
VII – redução das desigualdades regionais e sociais;
VIII – busca do pleno emprego;
IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas
sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.
Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.
A promulgação da Constituição em 1988 dá início a novo desafio, aquele voltado à efetivação dos preceitos constitucionais. Desde então se estabelece um luta concreta que opõe, de um lado, a grande massa da sociedade interessada nas garantias e direitos conquistados, e de outro, a classe dominante na economia, nas instituições e nos meios de difusão de ideias, contrárias à efetivação das conquistas constitucionais.
Nos anos 90 o governo neoliberal de Fernando Henrique Cardoso conseguiu aprovar emendas à constituição, cujo teor alterou a ordem econômica lá inscrita. As emendas referidas possibilitaram a quebra do monopólio estatal do petróleo e a venda de empresas estatais, como foram as vendas das empresas de telecomunicações, da CSN e da Vale do Rio Doce.
Ainda da safra do governo FHC, vieram a reforma da previdência de 1998 e a flexibilização de leis trabalhistas, que possibilitou a ampliação da terceirização, em atividades sem previsão legal.
A vitória de um governo de feição democrática e popular em 2002, apoiado em forças políticas novas, possibilitou a interrupção da implementação do programa neoliberal. No entanto, a interrupção citada não reverteu o que já havia sido alterado.
O novo governo se empenhou em busca da efetivação dos direitos e garantias previstas na CF/88. Porém, a manutenção intacta da lógica financista na macroeconomia, além da subestimação do poder da classe dominante, impediu derrotar os adversários de classe.
A explosão da crise econômica mundial no mercado norte americano em 2008, e posteriormente na Europa, atingiu a América Latina, o que fragilizou e comprometeu o caminho alternativo adotado pelo Brasil de investimento social e inclusão pelo consumo.
As dificuldades econômicas e a correlação de forças políticas desfavorável levaram à inversão do equilíbrio político e à concretização de golpe de estado pela via parlamentar, que afastou a presidenta Dilma do governo federal.
A interrupção do novo ciclo político, iniciado em 2002, foi a via pela qual as classes dominantes viabilizaram a retomada do projeto neoliberal, em confronto direto com a ordem democrática, inclusiva e transformadora inscrita na Constituição Federal de 1988.
Não por acaso, o primeiro passo do governo ilegítimo do Michel Temer se volta à aprovação da PEC 241/55, que altera completamente o texto constitucional, principalmente quanto às responsabilidades do Estado com a garantia dos direitos sociais, além das reforma previdenciária e reforma trabalhista, que reduz e flexibiliza direitos e garantias.
Na vigência do atual governo – de pouco mais de seis meses -, o congresso nacional, com a autorização do poder judiciário, conseguiram comprometer e fragilizar as conquistas democráticas dos últimos 70 anos.
Por isso mesmo, o fim do ano de 2016 e o recesso institucional trazem certo alento para as forças democráticas e populares. Ao mesmo tempo, 2017 prenuncia sua chegada num misto de angústia e desafio.
Considerando que a sociedade não se coloca problema que não possa resolver , 2017 será um ano de grandes desafios, dos quais inverter o equilíbrio político – atualmente favorável à classe dominante – precisa ser o objetivo comum da sociedade, a ser perseverantemente perseguido e construído.
Somente a construção de um novo cenário político no qual prevaleça o protagonismo do trabalho e das forças políticas progressistas possibilitará restabelecer a vigência do Estado Democrático de Direito e o respeito à Constituinte Federal de 1988.
II Preâmbulo da Constituição Federal de 1988.
III Karl Marx in Forças Produtivas e Relações de Produção. Ao analisar o processo de mudanças na sociedade, o autor identifica na formação social antiga a gênese da nova formação. Porém, a superação da velha formação somente acontece quando as condições materiais exigidas encontram-se amadurecidas. “Por isso a sociedade não coloca para si, nunca, senão problemas que pode resolver, (…)