José Fiori: Desenvolvimento e dívida externa

Por José Luís Fiori, em
coluna na Agência Carta Maior*

Na política externa do governo Lula, o mais importante vem sendo a posição de destaque e de sustentação que o Brasil acabou ocupando no debate

Depois da independência, e durante a primeira metade do século 19, o Brasil e os demais países latino-americanos não dispunham de Estados e economias nacionais efetivos, nem constituíam um sistema político e econômico regional. Por isso, com facilidade, foram colocados numa posição periférica, dentro da geopolítica mundial, e foram transformados imediatamente – com o total apoio das elites locais – no primeiro laboratório de experimentação dos famosos “Tratados Desiguais” ou de “livre-comércio”, que depois atuaram como chave de entrada e expansão do império britânico, na África e na Ásia.

No Brasil, mesmo depois da proclamação da República, e pelo menos até a crise de 1930, o Estado seguiu sendo fraco e tendo baixa capacidade de incorporação e mobilização política nacional, sem ter nenhum tipo de pretensão expansiva. E apesar do início da industrialização e das primeiras filiais internacionais, o pólo dinâmico da economia da “velha república” seguiu sendo “primário-exportador”. Essa inserção econômica permitiu ao Brasil crescer a taxas médias razoáveis, até a crise de 30, graças à complementaridade de sua economia interna com os mercados europeus e com o capital financeiro inglês. Além disto, ao contrário de outras economias semelhantes, a economia exportadora brasileira ajudou a criar um mercado interno de alimentos e de mão-de-obra migrante, e uma extensa rede de transportes e comercialização, sobretudo no caso do complexo cafeeiro.

Entre a crise econômica mundial de 1930 e o início da Guerra Mundial, o Brasil reagiu ao “estrangulamento econômico” externo provocado pelas guerras e pela crise internacional, implementando políticas públicas que fortaleceram o estado central e a sua economia nacional. Mas, no caso da política externa, sua autonomia durou pouco, e em 1938, o Brasil já havia se alinhado ao lado da nova liderança mundial norte-americana.

Depois da Guerra Mundial, o Brasil não teve posição relevante na geopolítica da Guerra Fria, mas foi colocado na condição de principal sócio econômico dos Estados Unidos, dentro da sua periferia sul-americana. Não houve Plano Marshall para a América Latina, nem o Brasil teve acesso privilegiado aos mercados norte-americanos, como no caso dos “desenvolvimentos a convite” europeus e asiáticos. Mesmo assim, o Brasil se transformou numa experiência original de desenvolvimento acelerado e industrialização pesada, depois de 1955, sob a liderança dos investimentos estatais e do capital privado estrangeiro, proveniente de quase todos os países do núcleo central do sistema capitalista.

Neste período, entretanto, apesar do seu alinhamento incondicional, ao lado dos Estados Unidos , na Guerra Fria, o Brasil começou a exercitar uma política externa mais autônoma, combativa e global, ao lado de suas políticas econômicas desenvolvimentistas. Como no caso da iniciativa da Operação Pan-americana, em 1958, e da Operação Brasil-Ásia, nos anos 1959-60, durante o governo de Juscelino Kubitschek, que também se aproximou da Europa e da África Negra, enquanto rompia relações com o FMI.

Esta nova posição internacional do governo brasileiro avançou no início da década de 60, com a “política externa independente” do governo Jânio Quadros, que incentivou a aproximação do Brasil com América Latina, Ásia e África, e também com o mundo socialista e o Movimento dos Países Não-Alinhados. Além disto, o Brasil teve uma participação ativa nos processos de criação da Alalc, da Unctad e do Grupo dos 77, na ONU. Esta mesma política externa foi retomada com alguns traços ainda mais agressivos e autonomistas, a partir do governo militar do general Ernesto Geisel, na segunda metade dos anos 70, a despeito do seu alinhamento incondicional, ao lado dos EUA, na sua luta anticomunista. E foi mantida pelo primeiro governo democrático de José Sarney, apesar da prolongada crise da “dívida externa” vivida pelo país durante toda a década de 80.

No início dos anos 90, a vitória americana na Guerra Fria, junto com a utopia da globalização e uma grande onda de liquidez internacional criaram as bases materiais e ideológicas da nova virada do desenvolvimento e da política externa brasileiros. Em particular, entre 1994 e 2002, quando o governo Fernando H. Cardoso apostou numa associação íntima com os Estados Unidos – e em particular com Bill Clinton – enquanto o seu governo desmontava o estado desenvolvimentista e promovia a volta do Brasil ao modelo livre-cambista do século 19. Mas, depois de 2003, durante o governo Luiz Inácio da Silva, a política externa brasileira mudou de rumo, retomou o caminho da integração e do fortalecimento político e econômico da América do Sul, e da intensificação dos laços políticos, comerciais e tecnológicos com a África e a Ásia, procurando globalizar as questões internas do “hemisfério ocidental”.

Nesta nova direção, contudo, o mais importante vem sendo a posição de destaque e de sustentação que o Brasil acabou ocupando – neste período – no debate cada vez mais intenso e generalizado que está se travando em toda a América do Sul, sobre uma nova posição internacional do continente, e em particular, sobre a redefinição da hegemonia hemisférica dos Estados Unidos. Neste momento, não há como não ver: este é o grande tema e o grande conflito que opõem entre si, de norte ao sul, as lideranças populares e políticas, as elites econômicas e os intelectuais sul-americanos.

Nesta luta, em particular no Brasil, existem hoje duas forças ou atores que atuam decisivamente a favor de uma opção liberal e subalterna: i) uma intelectualidade – em geral de classe média – que se deslumbra ao chegar perto do poder político ou financeiro internacional e se transforma em defensora e porta-voz de uma espécie de “cosmopolitismo de cócoras”, ii) e uma elite econômica, cujo “descompromisso nacional” é legitimado por esta mesma intelectualidade, e que nunca precisou lutar ao lado do seu próprio povo – como na Europa, na Ásia e também nos Estados Unidos – para assegurar a acumulação da sua riqueza, e garantir a sua própria segurança, conseguindo ou preferindo refugiar-se nos circuitos financeiros internacionais, e submeter-se à tutela estrangeira da potência dominante.