A crise política, segundo Marquês de Sade

Peça do grupo Satyros, em cartaz até junho em São Paulo, faz conexão entre os porões corruptos do poder e o clássico romance “Os 120 Dias de Sodoma”, escrito pelo Marquês de Sade. Leia crítica de

Um dos textos de Marques de Sade, utilizados na atual montagem de “120 Dias de Sodoma”, do grupo Satyros, em cartaz até junho em São Paulo, expõe de forma incisiva a tônica do espetáculo: “Vejo todos os dias, nas ruas, os miseráveis que nada possuem e através da comparação posso dizer: como somos afortunados!”. Aos poucos, ao longo da peça, a França de Sade vai sendo costurada ao Brasil atual. Estabelecida a conexão, não é difícil identificar as semelhanças: corrupção por todos os lados, decadência generalizada das instituições e as, cada vez mais gritantes, diferenças sociais.

Se na França os cambalachos escusos dos poderosos de plantão resultaram em uma revolução, na opinião de Rodolfo García, que assina a adaptação e a direção da peça, por aqui a crise, até o momento, só teve resposta por meio da apatia coletiva, sentimento que somou peso na decisão de encarar a empreitada de trabalhar com um texto tão polêmico: “O teatro não pode permanecer indiferente a um dos períodos mais turbulentos da história política recente e encontramos na obra de Sade várias semelhanças com o momento atual, por isso aceitamos o desafio”, observa García.

Mas, a peça não se fixa a nomes, datas ou a fatos pontuais. O imbróglio político do momento, somado ao texto corrosivo de Marquês de Sade, tornaram-se canais para uma reflexão ainda maior, não apenas sobre nossos horizontes mais próximos, mas também sobre valores que perpassam, inclusive, os limites políticos. “O objetivo não é fazer uma conexão simplista com os fatos atuais”, explica García. “Falamos de uma condição básica do ser humano, ou seja, satisfação pessoal e destruição do que não nos dá prazer”, completa.

Escola de libertinos –
Inspirado na obra clássica de Marquês de Sade “Les 120 journées de Sodome”, a montagem de “120 Dias de Sodoma”, faz parte da trilogia sadeana que o grupo Satyros iniciou anos atrás com “Filosofia na Alcova” e que deve ser concluída com “Julieta de Sade”, em junho. Considerada pelo próprio Sade uma de suas criações mais complexas e polêmicas, a história narra a insana idéia de quatro libertinos, ligados ao poder vigente, de submeter jovens virgens aos seus mais bizarros desejos. Por trás da trama, a estrutura do pensamento filosófico de Sade, segundo a qual as paixões poderiam ser divididas em quatro classes: simples, complexas, criminosas e assassinas.

Por suas idéias libertinas e em conseqüência de uma vida regada a todo tipo de orgias, Sade, embora filho de uma rica família da aristocracia francesa, passou quase metade de sua vida entre presídios e hospícios. Aliás, foi em um de seus exílios, em uma cela da Bastilha, entre outubro e novembro de 1785, que escreveu “120 Dias de Sodoma”. Com parcos recursos, o manuscrito foi escrito em um rolo de papel de 12 metros de comprimento. O romance, por seu conteúdo subversivo, foi publicado clandestinamente, mas amargou quase dois séculos de proibição e silêncio.

Por suas imersões no pântano perigoso das perversões humanas, a adaptação do romance de Sade apresentou vários obstáculos, entre eles, encontrar um elenco disposto a dialogar com a obra que exigiria cenas de conteúdo fortíssimo com violência sexual, estupro, sodomia, escatologia, torturas físicas e mentais, e claro, a exposição do corpo nas várias cenas de nudez, durante quase todo o espetáculo. A atriz Gabriela Fontana aceitou o desafio, mas conta que enfrentou inúmeras dificuldades. “Precisava estar totalmente disponível e inteira para a peça, pra isso tive que enfrentar alguns fantasmas, por exemplo, perder o pudor que sempre tive com meu corpo e também esquecer meus próprios valores, ao menos durante a peça, pois muito deles são derrubados pelo autor”, revela a atriz.

A praça é nossa –
O grupo Satyros, criado em 1989, por Ivan Cabral e Rodolfo Gárcia Vazquez, ocupa hoje duas salas de espetáculos na praça Roosevelt, bem no centro nervoso da capital paulista. A região que há bem pouco tempo era conhecida pela violência e pelo intenso tráfico de drogas, com a presença dos vários teatros, respira hoje outros ares. A convivência harmoniosa entre intelectuais, travestis, atores e os tantos outros personagens que circulam pelo lugar inspirou uma homenagem celebre, assinada pela alemã Dea Loher, que ficou impressionada pela estranha simbiose do lugar.

A peça “A Vida na Praça Roosevelt”, da escritora e dramaturga alemã, montada em 2005 pelo grupo Satyros, rendeu à Gárcia um premio Shell pela direção do espetáculo e também a aproximação com a Alemanha. Enquanto a trupe sadeana prossegue sua temporada em São Paulo, o elenco dessa outra peça, seguiu na semana passada, com os diretores Rodolfo García e Ivan Cabral para uma série de apresentações ao publico alemão. “Eles estão com uma grande expectativa em torno de nosso trabalho, querem saber como a cultura substituiu a violência nas calçadas da Roosevelt”, analisa García. “Também estão curiosos para ver como respondemos a este texto, escrito por uma das maiores dramaturgas alemãs vivas”, completa. Dea Loher ganhou recentemente o Prêmio Brescht de Teatro.