Mercosul: estagnação ou crise de crescimento?

Na avaliação de Eduardo Sigal, subsecretário de Integração Econômica do Ministério de Relações Exteriores da Argentina, o Mercosul vive uma crise de crescimento e tem pela frente o desafio de superar

As dificuldades enfrentadas pelo processo de integração na América do Sul devem ser abordadas a partir dos efeitos devastadores das políticas neoliberais dos anos 90, implantadas na quase totalidade dos países da região. Essa foi a premissa adotada por Ana Maria Sanjuán, professora da Universidade Central da Venezuela, em sua análise sobre o atual estágio do Mercosul e de criação da Comunidade Sul-Americana de Nações, na conferência promovida pelas fundações Perseu Abramo, Jean-Jaurès, Friedrich Ebert e Pablo Iglesias. Fenômenos recentes como a implosão da Comunidade Andina de Nações (CAN), a nacionalização do gás e do petróleo na Bolívia e os conflitos entre Argentina e Uruguai em torno da construção de fábricas de celulose são, em boa medida, desdobramentos de sucessivas crises que enfraqueceram os estados e sociedades sul-americanas. Esses países buscam agora tomar medidas para fortalecer suas combalidas economias, afetando o processo de integração como um todo.

O embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, em seu livro “Desafios Brasileiros na Era dos Gigantes” (Ed. Contraponto), definiu do seguinte modo essas políticas implementadas nos anos 90: “As políticas executadas pelos governos neoliberais na América do Sul e na região amazônica não atingiam o cerne da questão econômica, que consiste na construção e no desenvolvimento do mercado interno e no fortalecimento da coesão social. Fundaram suas esperanças em uma inserção retrógrada no mercado internacional, tentando uma volta dourada aos anos dourados da exportação de produtos primários e da fictícia estabilidade do padrão-ouro a partir de novos avatares, como foi o 'currency board' (paridade fixa) argentino. A abertura radical de suas economias ao capital multinacional e as privatizações aceleradas causaram o enfraquecimento empresarial local e a desestruturação dos já frágeis Estados nacionais, gerando temporariamente, de outro lado grandes ingressos de capital estrangeiro, o que os iludiu” (página 179).

Velhos e novos problemas

Essa ilusão custou caro. O desmantelamento de estruturas públicas já precárias lançou os países da América do Sul em mais uma corrida contra o atraso. Os obstáculos enfrentados hoje na busca pela integração articulam problemas de política interna e externa. “Os países andinos”, exemplificou Ana Maria Sanjuán, “precisam ser integrados internamente primeiro”. Mas não há tempo para resolver o problema interno primeiro e só depois tratar da questão externa. “Há coisas que não terminam de desaparecer e outras que não terminam de nascer”, resumiu Eduardo Sigal, subsecretário de Integração Econômica do Ministério de Relações Exteriores da Argentina. Essa confluência permanente entre velhos e novos problemas, defendeu, leva à compreensão de que a integração não é um destino, algo inevitável, mas sim um projeto político necessário para a América do Sul, um projeto que exige escolhas e decisões políticas, caso contrário, não se efetivará.

E essas decisões, acrescentou, repetindo o diagnóstico da professora venezuelana, têm que se defrontar com os resultados das fórmulas adotadas nos anos 90, de abertura indiscriminada dos mercados e de flexibilização das economias. “Houve uma competição na América Latina para ver quem precarizava mais as relações e trabalho, quem flexibilizava mais a economia, quem abria mais os seus mercados.”, resumiu. Este cenário, ressaltou, é justamente o que nos empurra para o caminho da integração. “O Mercosul é uma estratégia irrenunciável para o governo argentino. Nenhum conflito circunstancial nos afastará desse caminho”, assegurou Sigal. E “conflitos circunstanciais” é o que não falta no cenário atual. Mas há também algumas novidades auspiciosas, destacou o embaixador argentino, citando a revitalização dos vínculos entre seu país e o Brasil. “Isso é decisivo para a América do Sul. Trata-se de um fortalecimento de relações que não traz nenhum prejuízo para Uruguai e Paraguai, muito pelo contrário”.

Aumento do comércio regional

Ainda segundo Sigal, a crítica que esses países poderiam fazer a Brasil e Argentina é em virtude do não aprofundamento dessas relações e da falta de ritmo e de dinamismo nas mesmas. O obstáculo para que essa revitalização ocorresse mais cedo, explicou, foi a destruição do sistema industrial argentino na década de 90, o que criou uma enorme assimetria em relação à economia brasileira. “O Brasil entendeu isso e, a partir de 2005, passamos a viver um outro tipo de relação. Um dos resultados desse novo quadro é que, em 2005, houve um crescimento de 25% no intercâmbio comercial dentro do Mercosul. E as exportações globais dos países do bloco cresceram 20,3%”, afirmou o embaixador argentino. Além disso, acrescentou, em 2007, cerca de 87% do comércio na América do Sul estará liberalizado. Sigal destacou que a concretização da Comunidade Sul-Americana de Nações criará um bloco de 360 milhões de habitantes e 17 milhões de quilômetros quadrados (será o terceiro maior bloco do mundo, ficando atrás apenas da União Européia e do Nafta, que reúne EUA, Canadá e México).

Mas para que esse projeto se transforme em realidade, há ainda um longo caminho a percorrer. Entre as tarefas para que isso ocorra, Sigal destacou a necessidade da integração física, da complementação energética entre os países, de complementação de mercados que evitem uma competição acirrada entre os membros do bloco e de um Fundo de Convergência Estrutural com recursos suficientes para corrigir as assimetrias hoje existentes. “O Mercosul”, concluiu, “vive uma crise de crescimento”. “Até agora, ele se desenvolveu através de acordos intra-governamentais. É preciso agora garantir a participação da sociedade e colocar o seu parlamento em funcionamento”. Não houver qualquer divergência em relação à importância dessas medidas. O problema é como articular a sua implementação com o ritmo e as exigências de curto e médio prazo de cada país. Os conflitos vividos hoje no Mercosul são, em larga medida, resultado da ausência de uma equação satisfatória para esse problema. Todos os países têm suas urgências a resolver e ninguém quer sair perdendo em qualquer acordo.

Política interna e externa

Todos os países partilham, em maior ou menor grau, a posição expressa por Marco Aurélio Garcia, assessor especial de Política Externa da Presidência da República: “a nossa política externa e o projeto de integração da América do Sul fazem parte do nosso projeto nacional de desenvolvimento”. Na mesma linha de Sigal, Marco Aurélio tratou de localizar os problemas vividos hoje pelo Mercosul. “Desde que o Mercosul nasceu, ele enfrentou crises. Já tivemos crises provocadas por políticas diferentes de governos diferentes, como foi o caso da desvalorização do real no Brasil (durante o governo Fernando Henrique Cardoso), que teve um grande impacto na Argentina. Um ministro argentino chegou a dizer que queria manter relações carnais com os EUA. Aqui no Brasil, quase na mesma época, isso não foi dito assim, explicitamente, mas talvez estivesse também presente essa fantasia sexual”, ironizou.

Marco Aurélio Garcia destacou ainda a adoção de mecanismos de adaptação competitiva com a Argentina, como instrumento para correção de assimetrias que têm efeitos negativos para as economias dos dois países. A implementação desses mecanismos, ressaltou, não foi pacífica, encontrando resistência por parte de setores do empresariado brasileiro. Ele citou o caso da decisão da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, que criou obstáculos à importação do arroz uruguaio. “Foi uma decisão ilegal, rejeitada pelo governador Germano Rigotto e retomada pela Assembléia. O governo federal foi obrigado a ingressar no Supremo Tribunal Federal (STF) para contestar a medida”. O Brasil, acrescentou, também aceitou uma revisão do acordo de Itaipu com o Paraguai, com um grande sacrifício para o Tesouro nacional. Na avaliação do assessor especial da presidência, o Mercosul vive uma situação paradoxal. “Nunca se reuniram condições políticas tão favoráveis como agora e nunca se multiplicaram tantos pequenos incidentes”.

Entre as condições favoráveis citou o fracasso dos modelos não-integracionistas e a eleição de governos progressistas afinados, com diferenças mas dispostos ao diálogo. “Fora os países do Caricom (Comunidade do Caribe), todos os demais países são associados ao Mercosul. Até o México pediu associação ao bloco. Nós tivemos uma grande ampliação, mas não na profundidade necessária. Enfrentamos hoje o problema das assimetrias regionais, que persistem e não podem ser resolvidas por meio de uma simples união aduaneira. Entre os passos que precisamos dar agora, destacam-se a articulação produtiva, a criação de cadeias de valor, os investimentos em infra-estrutura e a implementação do parlamento”, concluiu Garcia. Um passo nesta direção será dado neste mês de junho, quando representantes de governos da região vão elaborar projetos que serão apresentados aos presidentes dos países envolvidos na construção da Comunidade Sul-Americana de Nações.