Comício em Porto Alegre: Lula, a imprensa e a voz das ruas

No comício realizado em Porto Alegre, Lula dirigiu-se à imprensa, dizendo: “Se a nossa querida imprensa brasileira tivesse tido comigo 10% da condescendência que teve com o primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso hoje eu teria 70% dos votos nesta

Noite de 25 de setembro. O presidente Lula inicia seu discurso no encerramento do comício da Frente Popular (PT-PCdoB), no Largo Glênio Peres. Após as saudações iniciais, ele volta o olhar para o local onde estava a imprensa e fala: “Eu tenho consciência de que as coisas que fiz no Brasil e as coisas que fiz neste Estado nem sempre foram divulgadas com a isenção que mereciam. Vocês sabem que não sou de reclamar. Não fico lamentando as coisas que não aconteceram comigo e parto para a luta para ver as coisas acontecerem. Mas tem uma coisa que hoje vou dizer aqui. Se a nossa querida imprensa brasileira tivesse tido comigo 10% da condescendência que teve com o primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso hoje eu teria 70% dos votos nestas eleições. Não tenho dúvida de que, poucas vezes na história do país, um presidente foi tão massacrado como fui”. Com seus blocos em punho, os jornalistas anotam as palavras do presidente. Alguns sorrisos irônicos. Ou de escárnio. Difícil precisar. Uma jornalista faz cara feia e reclama do volume do alto-falante.


 


Não é a única a reclamar. Atrás dela, é o povo que reclama. E reclama dos jornalistas. Com o Largo Glênio Peres lotado, muita gente não tinha uma boa visão do palco principal. Um palco auxiliar montado para a imprensa acabou encobrindo a visão de uma pequena multidão que se aglomerou junto a uma das paredes do Mercado Público. Em sua esmagadora maioria composta por moradores da periferia de Porto Alegre e da Região Metropolitana, essa multidão queria ver Lula. Mas havia um pequeno batalhão de repórteres e fotógrafos à sua frente. E os gritos de protesto saíram naturalmente.


 


“Sai da frente que eu quero ver o Lula”, gritou uma mulher negra, de aproximadamente 40 anos. – “Isso é uma barbaridade”, emendou um homem de uns 50 anos, encolhido atrás de um fino casaco de pano e sob um velho boné. – “Nós estamos aqui trabalhando”, respondeu um jornalista, virando as costas para os reclamantes.


 


Não foram os jornalistas que escolheram aquele lugar para ficar, mas a simbologia da cena transcende a geografia do comício. Lula dirigiu a palavra à imprensa, olhando diretamente em sua direção. Os jornalistas anotavam algumas frases que, no dia seguinte, resumiriam todo o conteúdo do comício. Atrás deles, o povo queria ver Lula. E os jornalistas atrapalhavam sua visão.


 


Getúlio, JK, João Goulart


 



E Lula seguiu falando, lembrando outros períodos históricos quando a imprensa desempenhou um papel decisivo na política nacional. “Tenho muito vivo na memória o sofrimento de Getúlio Vargas, de 50 a 54, quando foi levado a dar um tiro no próprio peito porque não agüentava a pressão. Tenho muito em mente o que se falava de Juscelino Kubitschek, de 1955 a 1960, quando ele governou esse país. Hoje, Juscelino virou unanimidade nacional, tem até novela dele. Mas ele era esculhambado todo o santo dia, era chamado de ladrão todo dia, era escorraçado todo dia. Cinqüenta anos depois, se reconheceu que ele foi um dos melhores presidentes do Brasil. Não vou falar de todos, mas queria lembrar também o João Goulart, que teve que passar por todas as humilhações. Era vice-presidente da República, estava na China, e quando Jânio Quadros renuncia era seu direito legítimo assumir a presidência. Inventaram o parlamentarismo para não deixar ele assumir o cargo na sua plenitude. Ele assumiu, foi feito um plebiscito e o povo derrotou o parlamentarismo. João Goulart assumiu e pouco tempo depois foi retirado do país”.


 


“Nunca reivindiquei que alguém fale bem de mim”, acrescentou. “A única coisa que quero é um comportamento republicano, onde a gente seja justo na crítica e no reconhecimento das coisas que um governo faz. E nem sempre isso é verdadeiro no nosso país”. A partir daí, Lula passou a relacionar alguns dos investimentos do governo federal no Rio Grande do Sul e afirmou categoricamente que nunca um governo investiu tanto no Estado. Criticou a postura do governo Germano Rigotto (PMDB), que apresenta algumas dessas obras como se fossem iniciativas suas e o silêncio da mídia a respeito. E desafiou os jornalistas a provar o contrário. De fato, em sua campanha eleitoral na TV, Rigotto apresenta projetos como o Biodiesel e a construção da plataforma marítima P-53 em Rio Grande como se fossem conquistas de seu governo, omitindo qualquer participação do governo federal. E a mídia gaúcha silencia a respeito, dando muito mais espaço às críticas do governo estadual à “omissão do governo federal”.


 


A seletividade da mídia


 



O caso do Programa Luz para Todos, idealizado durante a gestão de Dilma Rousseff no Ministério das Minas e Energia, é paradigmático. No dia 18 de dezembro de 2005, o jornal Zero Hora publicou uma matéria, com destaque e foto na capa, sobre como a luz estava chegando a pequenas comunidades rurais e mudando a vida da população. Intitulada “A luz chega e muda a vida”, a matéria fala sobre a revolução que ocorreu na vida da família Thurow, que vive na localidade de Potreiro Grande, com a chegada da energia elétrica. A matéria não trouxe uma linha sobre o programa Luz para Todos, que, somente em 2005, já havia repassado R$ 15,6 milhões para obras de eletrificação no interior do RS, obras como a que levaram luz para a família Thurow. Mais ainda, todo o dinheiro investido na implantação do programa no RS veio do governo federal. O governo estadual não colocou até hoje um real neste programa, lembrou Lula no comício. Ele lembrou outros investimentos federais no Estado que não são de conhecimento da maioria da população.


 


“Estou vindo de dois momentos importantes. Fui a Candiota dar início ao processo de construção de mais uma termelétrica, onde iremos explorar aquela mina que tem 40% de todas as reservas de carvão do Brasil. Desde 1983, todo mundo reivindica essa obra, mas apenas nós resolvemos recuperar essa capacidade de produção de energia. Em uma parceria com os chineses e graças aos estudos que começaram no governo Olívio Dutra, conseguimos anunciar agora um investimento de 950 milhões de reais para produzir mais 375 megawatts de energia. Também acabo de chegar de uma visita à primeira fábrica de semi-condutores da América Latina, que está sendo instalada aqui no Rio Grande do Sul, financiada pelo governo federal, também um projeto que começou quando você (Olívio Dutra) era governador do Estado. É um investimento de 150 milhões de reais do governo federal, que representará uma revolução tecnológica para o Estado do RS”.


 


A população, prosseguiu Lula, muitas vezes não é informada corretamente do que o governo investiu no RS em 45 meses de mandato. “Só na ampliação da Refap (Refinaria Alberto Pasqualini), aqui na cidade de Canoas, foram investidos 970 milhões de dólares. Na indústria naval gaúcha, que não tinha nada, estamos investindo 1,4 bi de reais, fazendo um dique seco na cidade de Rio Grande e construindo a plataforma P-53, da Petrobrás. Quantas vezes prometeram duplicar a BR 101? Pois bem, nós que nunca tínhamos prometido, estamos fazendo, um investimento de 230 milhões de reais. No setor elétrico, além de Candiota, estamos fazendo o Parque Eólico, um investimento de 1,5 bilhão de reais. Eu tive que vir aqui com a Dilma, pois andavam falando que o projeto era de outra pessoa. Tive que vir aqui para mostrar que era um projeto pensado por nós, ainda no tempo do Olívio Dutra. Em três anos e meio, fizemos 22% de tudo o que foi feito de linhas de transmissão no Brasil em 122 anos”.


 


 


“A Voz das Ruas”


 



Lula lembrou, por fim, os investimentos na área social. “O ProUni propiciou 19.504 vagas na universidade para estudantes pobres. A Universidade do Pampa (Unipampa), que já tem 2 mil alunos, terá 25 mil estudantes no RS. No setor da habitação, foram 2,3 bilhões de reais para beneficiar 158 mil famílias. Eu duvido que tenha havido algum presidente da República que, em apenas 45 meses de mandato, tenha feito os investimentos que o nosso governo fez aqui no RS. Aqui neste Estado toda política que cuida dos pobres é do governo federal. A imprensa pode me desmoralizar se eu estiver mentindo”, desafiou. Essa desmoralização pode se dar de muitas maneiras, entre elas, através do silêncio. No dia seguinte ao comício de Porto Alegre, os jornais da cidade destacavam o uso da palavra “aloprado” por Lula, referindo-se aos petistas que envolveram-se no episódio do dossiê contra Serra.


 


O jornal Zero Hora, em uma seção intitulada “Voz das Ruas”, fez a seguinte descrição do comício: “Clichezão brabo, tudo bem, mas funciona em Hollywood. Ou o PT não teria montado aquela megaestrutura de ontem no Largo Glênio Peres e nem buscado de ônibus milhares de militantes em todos os cantos do Estado para fazer exatamente isso: colocar a câmera num ponto elevado e encerrar o programa eleitoral na TV com o mar de bandeiras a homenagear Lula”. Na capa uma foto de Lula, Olívio Dutra (candidato ao governo do Estado), Miguel Rossetto (candidato ao Senado) e José Alencar, com o título: “Lula chama ex-auxiliares de bando de aloprados por compra de dossiê”. Logo abaixo, duas fotos maiores que a do comício, com Geraldo Alckmin e Heloísa Helena, fazendo “ataques em sintonia”. A cobertura do comício ficou diluída entre denúncias de corrupção e espetáculo montado. Bem diferente da edição do comício de encerramento da campanha do governador Germano Rigotto (PMDB), que ganhou foto de meia página com a família no palanque. As escolhas editoriais que pretendem traduzir a “voz das ruas” foram atrapalhadas no comício pelo grito de uma mulher da periferia de Porto Alegre que reclamava dos jornalistas que atrapalhavam sua visão: “Sai da frente que eu quero ver o Lula”.


 


Fonte: Agência Carta Maior