México: A rebelião pelas ondas do rádio

“Companheiros, o inimigo é o Estado”. Com está frase, La Ley saudou sua audiência na cidade mexicana de Oaxaca. Essa emissora de rádio privada permanece ocupada por ativistas e é o motor de uma revolta social que mantém o governo estadual contra a parede.

Tomar à força um meio de comunicação “é um delito grave, sabemos, mas não nos deixaram outra alternativa”, se justificou o professor “Selvis”, coordenador da emissora, cujas instalações são guardadas por cerca de 300 pessoas que acampam rodeadas por trincheiras feitas com sacos de areia, arames e ônibus velhos.



“Se o governo optar pela repressão sabemos que a rádio será a primeira a ser atacada, pois sabe que La Ley nos serve para manter a luta, que é estratégica para nós”, disse o coordenador, que prefere usar seu pseudônimo, pois teme por sua vida. La Ley, que pertence ao privado Rádio Programas de Oaxaca, está ocupada desde o dia 21 de agosto pela Assembléia Popular do Povo de Oaxaca (APPO). Nas ultimas semanas, o edifício onde está instalada foi atacado por homens armados, não identificados, em três ocasiões durante a noite, sendo que em uma delas foi morto o ativista Lorenzo San Pablo.



A APPO é um movimento formado por mais de 350 organizações sociais de Oaxaca, um dos estados mais pobres do México, que surgiu em junho no fragor dos protestos do sindicato local dos professores que se declarou em greve no dia 22 de maio, exigindo melhores salários. Desde junho, a APPO ocupa a maioria dos prédios da administração pública de Oaxaca e mantém acampamentos e trincheiras em várias regiões desta cidade de mesmo nome, especialmente no centro. Seus lideres advertem que não se moverão até que o governador Ulises Ruiz, a quem acusam de corrupto, repressor e assassino, renuncie.



“Companheiros, nosso destino é a vitória. Não devemos fraquejar, temos que nos unir e seguir na luta”, afirmou um locutor ao microfone de La Ley. Através da emissora, a APPO informa seus seguidores sobre suas estratégias, convoca mobilizações e recebe dezenas de telefonemas de simpatizantes. Além disso, passam por seus estúdios lideres sociais, trabalhadores, donas de casa e até crianças que falam a favor do levante popular. Suas lideranças, que nunca dizem seus nomes, convocam protestos, criticam duramente o governo nacional do conservador presidente Vicente Fox e o governador Ruiz, membro do histórico Partido Revolucionário Institucional.



Programação
Também transmitem músicas de cantores identificados com a esquerda, além de discursos de lideres dessa corrente ideológica, como o presidente de Cuba, Fidel Castro, e fazem constantes referencias ao seu colega da Venezuela, Hugo Chávez, destacando suas posições “antiimperialistas”. “É ilegal, mas é valido a APPO ter ocupado a rádio, pois é uma de suas armas mais efetivas. Sem ela talvez a história fosse outra”, disse Anabel López, porta-voz do grupo não-governamental Serviços para uma Educação Alternativa, que há 12 anos trabalha em Oaxaca.



Entretanto, López lamenta que na emissora sejam manejadas “posições fundamentalistas (de esquerda) e que estejam muito fechados”. Mas é preciso entender que “ocuparam a emissora de maneira espontânea e que continuam aprendendo a lidar com ela”, acrescentou. A Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), que realizou uma sessão na capital mexicana até a última terça-feira, pediu ao presidente Fox que suspenda as agressões contra empresas proprietárias de emissoras de rádio de Oaxaca, enquanto a Associação Mexicana de Editores de Jornais denunciou que a APPO seqüestrou estações privadas para utilizá-las como “um instrumento de sedição”.



“Aqui pode-se ver que as instalações de La Ley estão intactas, que nosso único interesse é manter a comunicação com o povo. Se nos cortarem esta possibilidade estaremos em dificuldades”, afirmou Selvis. Na maioria dos acampamentos da APPO há receptores de rádio sintonizados na emissora, cujos estúdios localizados a cerca de sete quilômetros do centro da capital de Oaxaca estão ferreamente vigiados pelos moradores. A segurança foi reforçada na véspera, quando circularam insistentes rumores de que policia e exercito poderiam entrar na cidade para desalojar a APPO, o que, por fim, não aconteceu. Nesta quinta-feira, e depois de várias tentativas inúteis de negociação, o governo Fox e a organização restabeleceram o diálogo.



“Acampamento”
Para entrar no prédio da rádio, todo visitante deve passar por várias barreiras de segurança e fazer fila junto a muitas pessoas. Nas portas de acesso há cartazes onde são lidas palavras de ordem contra o governador Ruiz e denúncias do desaparecimento forçado e prisão de ativistas. Dentro do edifício, os corredores estão cheios de caixas com alimentos e garrafas de água, bem como em muitas das suas salas, ocupadas por cerca de 50 pessoas. A maioria delas dorme no local há várias semanas.



“Aqui não somos técnicos, mas existe muita solidariedade de quem entende disto e da rádio, e eles estão nos ajudando a operar a emissora, nos entregam alimentos e cuidam da gente. Não esquecemos que há pessoas, sicários de Ruiz, que nos querem mortos”, afirmou Selvis. Leonarda Reyes, diretora do não-governamental Centro de Jornalismo e Ética Pública, disse à IPS que a ocupação de La Ley merece um castigo, “pois se trata de um atentado à liberdade de expressão”.



Entretanto, afirmou que esse fato deve ser colocado no contexto de um problema social e político grave, no qual muitos meios de comunicação não deram voz à APPO ou enfatizaram os ataques contra essa organização. A rede Oaxaquenha de Direitos Humanos, integrada por vários grupos, entre eles simpatizantes da APPO e, inclusive, membros dessa organização, com “Flor e Canto”, a Liga Mexicana pela Defesa dos Direitos Humanos e Ñu’u Ji Kandi, afirmam que os meios de comunicação comerciais locais estão, em sua maioria, aliados às autoridades.



Reyes identifica esse fato como negativo e atentatório ao livre exercício dos meios de comunicação, mas também afirma que o mesmo se passa co a APPO, que através de La Ley só dá voz a um setor, o que se opõe aos poderes públicos. Um diretor da emissora, que preferiu não se identificar por questão de segurança, disse à IPS que a APPO ameaçou destruir a rádio caso se faça algo para evitar que opera. “Está ocupação é um atropelo à liberdade de empresa e de expressão, por isso denunciamos criminalmente estas pessoas”, afirmo o representante da entidade proprietária da emissora. Segundo as leis, ocupar á força um meio de comunicação é crime grave punido com mais de cinco anos de prisão.



Denúncias
O trabalho dos jornalistas em Oaxaca tem sido difícil nos últimos anos. desde 1995, o jornal local Notícias sofre agressões e enfrenta um conflito sindical cuja origem está em sua atitude crítica diante das autoridades. Nas ultimas semanas também foi denunciada a agressão de vários repórteres da mídia local e nacional por parte da polícia e de membros da APPO. A SIP rechaçou tais fatos e pediu que sejam investigados. ‘A comunicação é uma arma fundamental neste conflito tão grave, e isso a APPO já entendeu”, afirmou a porta-voz da Serviços para uma Educação Alternativa.



Em maio, o sindicato de professores colocou em funcionamento a “Rádio Plantão”, que tinha alcance de apenas dois quilômetros de raio, mas deixou de operar em 14 de junho, quando a polícia atacou militantes da entidade que ocupavam a praça central de Oaxaca. Durante a repressão os policiais destruíram os equipamentos da rádio. Nesse mesmo dia, estudantes que depois se integraram à APPO ocuparam a emissora local, a Rádio Universid. Oito dias depois, as instalações dessa emissora foram atacadas a tiros por homens vestidos de preto e com os rostos cobertos, que também jogaram ácido nos transmissores, deixando-os inutilizados.



A APPO, então, decidiu tomar o Canal 9 de televisão, que pertence ao governo do Estado de Oaxaca, de onde foram feitas várias transmissões até 20 de agosto. No dia seguinte, policiais fortemente armados dispararam contra os que guardavam a antena de transmissão, ferindo um ativista e destruindo os equipamentos. “Não pense que isto é fácil, aqui não estamos brincando com a vida”, assegurou com ênfase o coordenador de La Ley. O ataque ao Canal 9 “causou indignação, fazendo com que de forma espontânea os companheiros tomassem uma dezena de emissoras de rádio particulares, que também nos atacavam de forma injusta, dizendo que somos violentos e nos acusando de não representar ninguém”, contou o ativista.



A maioria dessas emissoras foi devolvida aos seus proprietários pouco depois. Mas duas delas, que operam em FM, ficaram em mãos da APPO. Na quarta-feira, uma das emissoras, a Rádio Oro, foi abandonada porque seus equipamentos apresentaram defeito, deixando apenas La Ley em operação. “Companheiro, você é jornalista e deve os apoiar, diga que a La Ley deve continuar operando e que os homens de Ruiz não venham nos atacar, pois responderemos com bons golpes”, disse à IPS Hilda, uma mulher que pernoita no acampamento que guarda a emissora.