Baião, ritmo que correu o mundo

O crítico de música José Teles reconstrói a história do baião desde antes do surgimento da parceria entre Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga. No entanto, na sua visão, foi apenas a releitura das cantigas do sertão feita pelos dois que transformou o ritmo em

A Calógeras, uma avenida, com apenas dois quarteirões, situada entre o bairro da Glória e o Centro do Rio de Janeiro, já foi um dos pontos da boêmia do carioca. Ali funciona o lendário restaurante e bar Vilarino, que nos anos 50 testemunhou noitadas regadas a muito uísque consumido por Ary Barroso, Fernando Lobo, Tom Jobim, Vinicius de Moraes, e outros grandes artistas e compositores da época. Mas este trecho do Rio é de importância histórica para a música popular brasileira não pelas carraspanas dos artistas citados, e sim porque ali, num escritório de advocacia, abrigado em um dos seus prédios, foi onde nasceu oficialmente o baião, o ritmo que dominaria o cenário musical brasileiro de final dos anos 40 até a eclosão da bossa nova, em 1958. Um gênero cuja influência até hoje se faz presente na MPB, seis décadas depois de ser deflagrado pelo advogado cearense, de Iguatu, Humberto Teixeira, e um ex-soldado do exército, o pernambucano, de Exu, Luiz Gonzaga.


 


Numa tarde de mais transpiração do que inspiração, os dois relembraram a música com a qual cresceram em suas respectivas regiões (não tão distantes, pois Exu fica a alguns quilômetros da divisa com o Ceará). Asa branca, Juazeiro, Baião, e outros futuros clássicos da MPB, criados na Calógeras, eram na realidade temas de domínio público, faziam parte do repertório dos sanfoneiros do sertão. Teixeira e Gonzaga simplesmente deram uma roupagem urbana, pop, a estas canções, alterando em algumas as letras, casos de Asa Branca e Juazeiro (que Humberto Teixeira mais tarde retrabalharia, sem Luiz Gonzaga, com o nome original, Quixabeira, gravada pelos 4 Ases e 1 Curinga), noutras com novos versos.


 


Baião, lançada em 1946, pelos 4 Ases e 1 Curinga, é o aproveitamento da espartana linha melódica do cantador de viola, em compasso mais ritmado, com traços do coco e do maracatu (no início dos anos 50, na rádio Tamoio, Luiz Gonzaga anuncia o baião Pau de Arara, parceria com Guio de Moraes, como “um maracatu da minha terra”). Grosso modo, o baião foi a nossa primeira música de laboratório. Ou seja, idealizado com a finalidade de ser consumido como um produto. A letra explicita esta motivação (Eu vou mostrar pra vocês/como se dança o baião…). Gonzaga, então artista emergente, já com 35 anos, coroa para os padrões dos anos 40, pretendia inventar uma moda musical. Havia tentando isto antes com o também cearense Lauro Maia, que quase faz do seu balanceio o ritmo do momento, Maia não se interessou pela empreitada, e o indicou ao seu cunhado, o mais receptivo Humberto Teixeira, que se dividia entre a banca de advocacia e a música (era um compositor relativamente bem-sucedido).


 


O baião, no entanto, como gênero e dança, já existia no Nordeste desde o século 19. Aliás, o balanceio, também. O Padre Lopes Gama, ferino redator e editor do jornal recifense O Carapuceiro, em 1842 critica o que para ele seria um afrouxamento da moral na sociedade, com esta quadrinha: “Quadrilhas e balancês/são favoráveis ensejos/se não de furtivos beijos/d'abraços e d'apertões/d'introduzir petições'.


 


Em Danças folclóricas brasileiras (de 1954), Maria Amália Correa Giffoni, registra a coreografia do baião, que remonta a década de 40 do século 18: “Já em 1842, falava-se no baiano ou baião, difundido no Nordeste brasileiro e muito em voga no século XIX. Era conhecido no Maranhão, Ceará, Rio Grande do Norte, Pernambuco, Paraíba, Sergipe, Bahia, com diversas modalidades coreográficas… caracterizava-se por ser dança viva, com movimentos improvisados, ágeis, nele aparecendo o sapateado, a castanhola de preferência produzida com os dedos, palmas, meneios, giros, além de volteados e roda de galo e mais raramente da umbigada”. Na verdade, em rótulo de disco, designando um gênero musical, o nome baião apareceu pela primeira vez em 1930, num 78rpm gravado na Columbia, pela cantora pernambucana Stefana de Macedo.O baião chama-se Estrela Dalva, composição de João Pernambuco, que participa do disco como acompanhante.


 


Independente da gênese, o baião firmou-se em pouco tempo. Foram raríssimos, os astros da era do rádio que não o gravaram. Do passional Nelson Gonçalves ao ídolo da mocinhas sonhadoras Cauby Peixoto. Das esfuziantes rainhas Emilinha e Marlene, ao galã-família Carlos Galhardo, de timbre mais apropriado às valsinhas dolentes. Não só no Brasil. Lá fora, a voluptuosa Silvana Mangano caiu no dengo do baião, fazendo sucesso com Anna (El negro Zumbon), tema do filme de Alberto Lattuada. Insuspeitadas influências do baião estão no rhythm and blues de meados dos anos 50, forjado na linha de montagem do Brill Building, um dos edifícios da Broadway, sede de dezenas de editoras musicais. De Leiber & Stoller, Doc Pomus e Shuman, a Gerry Goffin e Carole King, até Burt Bacarach (ouçam com atenção Do you know the way to San Jose?) empregaram células rítmicas e linha de baixo de baião em suas composições.


 


A seminal parceria entre Gonzagão e Humberto Teixeira foi prolífica para o pouco tempo que durou. Teixeira alegou diferença de sociedade arrecadadora para o afastamento. Mais provável é que, esgotados os temas de domínio público, Humberto Teixeira tenha continuado produzindo pérolas e tendo que dividir com o Luiz Gonzaga que, sabidamente, era compositor bissexto, e um intérprete, “sanfonador” genial, que tornou definitiva quase toda gravação que fez, e que, costume existente até hoje, exigia parceria em canções cantadas por ele. Que nem jiló, Baião de dois, Macapá, e tantas outras provavelmente só tiveram de Gonzaga a sanfonização e a voz privilegiada. No auge do estranhamento entre ambos, Humberto Teixeira compôs o maior sucesso internacional do baião, sozinho, Kalu, com uma gravação antológica de Dalva de Oliveira, e a orquestra de Roberto Inglês.


 


Anos depois, final dos 60, os dois reconciliaram-se. Gonzaga voltou a gravar Humberto Teixeira, com a bela Canaã. Em junho de 1989, o violonista Ednaldo Queiroz, hoje morando nos Estados Unidos, visitou o Rei do Baião, que vivia seus últimos dias, num apartamento em Boa Viagem, com a última mulher, Edelzuíta Rabelo. Queiroz foi guitarrista, aos 17 anos, do conjunto LG Som, com o qual Lua percorria o sertão, nos anos 70, tempos de vacas magras para ele e o baião. Deitado numa rede, Gonzagão pegou pela última vez uma sanfona. E cantou, lento, num quase murmúrio, seu canto de cisne, perpetuado num pequeno gravador por Ednaldo Queiroz. Cantou foi Menestrel do Sol, de Humberto Teixeira, e Gonzagão comenta, enquanto faz a introdução na sanfona: “Ele fez pra mim”.


 


José Teles é crítico musical do Jornal do Commercio, de Pernambuco, e pesquisa o forró.