Escritora ataca Jô Soares e ''os homens mais gordos'' da TV

Em artigo para a revista Caros Amigos, a escritora Marilene Felinto ironiza ''a coleção de homens obesos ou quase obesos que desfila por telejornais e programas de 'entretenimento' nas redes de televisão''. Leio o texto abaixo. Os intertí

O homem mais alto do mundo e os homens mais gordos da televisão


 


Por Marilene Felinto


 


Numa sociedade regida por princípios quantitativos, o realismo numérico é ferventado a todo instante pela mídia (para usar uma idéia do crítico Fábio Lucas). A televisão, por exemplo, é povoada por elementos, indivíduos e situações inspiradas nesse princípio dos ''recordes'' numéricos (de peso, de altura, de distância, de velocidade etc.).


 


Basta analisar a coleção de homens obesos ou quase obesos que desfila por telejornais e programas de ''entretenimento'' nas redes de televisão nacionais: Faustão e Jô Soares são apenas espécimes clássicos (da Rede Globo). Seguem-se a eles Datena e Gilberto Barros, da Rede Bandeirantes, e Luciano Faccioli, da Rede Record, para citar os que mais aparecem.


 


Como profissionais (do jornalismo ou do showbiz, que uma coisa aqui já não se dissocia da outra) são mais ou menos medíocres, e tudo indica que aparecem mais pelo excesso de gordura do que pelo ''serviço'' que prestam.


 


Uma cena grotesca
Outro dia, no início de novembro, juntaram-se numa única cena – algo grotesca – o apresentador Jô Soares, que se vende corporalmente na mídia como ''o gordo'', e o chamado ''homem mais alto do mundo'', assim apelidado por uma dessas bíblias da imbecilidade contemporânea, o tal ''livro dos recordes'' ou Guinness World Records.


 


Nada sobraria do que teria sido uma entrevista do apresentador com o tal homem mais alto do mundo, o chinês Xi Shun, 55 anos e 2,36 metros de altura: Jô Soares, por meio de sua veia cômica de baixa extração, não fez outra coisa senão ressaltar, a golpes de sensacionalismo, o ridículo a que estavam expostos o homem gigante, mercadoria do Guinness que perambulava mundo afora divulgando a tal bíblia e um tal ''Dia Mundial dos Recordes'' (9 de novembro!) e ele próprio, ''o gordo''.


 


Nada de interesse foi perguntado ao chinês na pseudo-entrevista: se sua altura insólita era coisa de família, questão de genética, se seus parentes eram igualmente altos, se a altura lhe causava algum problema físico (que explicasse a bengala que usava, por exemplo).


 


A deformidade à frente
Na entrevista onde tudo era falso – o chinês, que não falava uma única palavra em português e dependia de uma intérprete, permaneceu o tempo todo alheio às piadas de mau gosto do apresentador -, sobressaíam a deformidade apenas, as formas distorcidas do espetáculo grotesco. Afinal, no universo do grotesco, destaca-se aquilo que se presta ao riso ou à repulsa por seu aspecto inverossímil, bizarro, estapafúrdio ou caricato. Trata-se da visualização do monstruoso, do insólito, do ridículo, do extravagante e do kitsch.


 


Por que se exibem tantos homens gordos na televisão se não por isso, se não como elemento da espetaculosidade banal que configura este meio de comunicação cheio de falsas sugestões? Não seria mera coincidência. E não se trata de os gordos estarem na contramão da vocação narcísica sob a qual o sentido da vida é buscado, na esfera estética, na beleza produzida nos laboratórios, nas academias de ginástica, nos regimes de alimentação e nas cirurgias plásticas.


 


Não – trata-se da mesma vocação ao inverso. Trata-se, além do mais, de um reforço no ideário machista de que homem pode ser qualquer coisa, fazer qualquer coisa e aparecer de qualquer jeito: até mesmo como o ''gordo'' grotesco. Ora, por que não se exibem mulheres balofas na televisão, nos telejornais, nos programas de ''variedades''? Pelo motivo óbvio de que está consumada no mercado de mídia a idéia de que mulher é objeto sexual e tem, portanto, que aparecer como tal – quando não anoréxica e bulímica, os quase-cadáveres dos desfiles de moda.


 


Com a cara da mídia
Este comentário não tem nenhuma intenção preconceituosa contra gordos. O que se diz aqui é que a presença específica de homens obesos nas redes de televisão nacionais tem a ver com o fato de a imagem gorda deles combinar com a concepção de ''consumo'' e ''devoração'' em que se funda a mídia hoje – ''devorar'' no sentido mesmo de destruir rápida e completamente, de apoderar-se, de usurpar.


 


É antes por seu peso e tamanho físico que o apresentador-jornalista Luciano Faccioli, da Rede Record, é homem de televisão. Não é por excelência profissional. No telejornal matinal São Paulo no Ar, o apresentador dá um show de obviedade piegas nos comentários e análises descabidas do noticiário que apresenta.


 


Para não falar da espetacularidade perversa operada por Datena (Brasil Urgente, Rede Bandeirantes) à custa da exploração da violência no universo das classes pobres. Para não falar de outra nulidade chamada Gilberto Barros (Boa Noite Brasil, Rede Bandeirantes).


 


''Apropriação devoradora''
Num conto antológico e genial chamado A Menor Mulher do Mundo (em Laços de Família, 1960), a escritora Clarice Lispector esgotou essa característica de apropriação devoradora da mídia que transforma pessoas em exóticas notícias de jornal ou televisão (como Jô Soares fez com ''o homem mais alto do mundo''). 


 


A narrativa de Clarice vai apresentando o processo de ''devoração'' de que é vítima a personagem ''Pequena Flor'', a menor mulher do mundo, descoberta ''nas profundezas da África Equatorial'' pelo explorador Marcel Pretre. ''No Congo Central descobriu realmente os menores pigmeus do mundo. E (…), entre os menores pigmeus do mundo, estava o menor dos menores pigmeus do mundo.''


 


Era uma mulher, que estava grávida, e a quem o explorador apelidou de ''Pequena Flor'': ''Marcel Pretre defrontou-se com uma mulher de quarenta e cinco centímetros, madura, negra, calada''. Todo o conto é a expressão do contraditório sentimento de amar sem devorar nem ser devorado: ''E então ela estava rindo (…). E ela continuou fruindo o próprio riso macio, ela que não estava sendo devorada. Não ser devorado é o sentimento mais perfeito. Não ser devorado é o objetivo secreto de toda uma vida''.


 


Etapas
Primeiro conta-se como a raça de Pequena Flor estava sendo aos poucos exterminada, a devoração real: ''Sua raça de gente está aos poucos sendo exterminada. (…) Os bantos os caçam em redes, como fazem com os macacos. E os comem. Assim: caçam-nos em redes e os comem. A racinha de gente, sempre a recuar e a recuar, terminou aquarteirando-se no coração da África, onde o explorador afortunado a descobriria''.


 


Num segundo momento, Pequena Flor é vítima de uma devoração simbólica: a de seu aparecimento num veículo de imprensa. ''A fotografia de Pequena Flor foi publicada no suplemento colorido dos jornais de domingo, onde coube em tamanho natural. Enrolada num pano, com a barriga em estado adiantado. O nariz chato, a cara preta, os olhos fundos, os pés espalmados. Parecia um cachorro.''


 


Pequena Flor é então vítima da reação da gente gorda que a vê no jornal e quer também comê-la, apoderar-se dela, usurpá-lá. Em uma casa, um menino leitor diz à mãe perplexa diante da foto da menor mulher do mundo:


 


''- Mamãe, se eu botasse essa mulherzinha africana na cama de Paulinho, enquanto ele está dormindo? Quando ele acordasse, que susto, hein! Que berro, vendo ela sentada na cama! E a gente então brincava tanto com ela! A gente fazia ela o brinquedo da gente, hein!''