A mídia latino-americana tem o dever de condenar o ditador Augusto Pinochet

A América Latina amanheceu feliz no dia 11 de dezembro, finalmente livre da nefasta presença física de Augusto Pinochet. Os jornais do mundo inteiro dedicaram-se a debater sobre a vida e obra do general chileno, responsável por uma das mais sangrentas dit

Se Pinochet não sobreviveu para ser condenado pelos crimes que cometeu, a história precisa, definitivamente, julgá-lo e condená-lo para que infâmias como, a de sua existência, nunca mais se repitam. E a história também é escrita pelo registro que os meios de comunicação fazem dos fatos. A distância histórica entre o final da ditadura chilena e a morte do general permite uma análise mais fria do período, mas também deixa brechas para amenizações, como a feita pelo economista Roberto Macedo, que fez carreira durante a ditadura militar brasileira, sobre o “sucesso econômico” do Chile.


 


O primeiro aviso aos colegas jornalistas é lembrar que não se pode comparar os número do governo Salvador Allende, derrubado pelo golpe de 11 de setembro de 1973, com os do período militar. Aos fatos.


 


O Chile sempre foi um país dividido entre as classes populares e a elite. Basta atravessar a avenida principal de Santiago. Na ponta próxima aos Andes, os bairros de ruas largas, casas sem muros, jardins conservados e carros importados. Em direção ao oceano, as poblaciones de tetos de zinco em ruas apertadas e cinzas. Cruze o Chile de norte a sul e veja em Calama, no norte, a marca nos descendentes dos indígenas de séculos de exploração dos recursos minerais, enquanto que nas regiões mais temperadas os brancos descendentes dos europeus recolhem os frutos.


 


O golpe de 1973 teve a marca dessa divisão. Allende, à frente da Unidade Popular, chegou ao poder por um processo eleitoral que permitia a um candidato com cerca de 35% dos votos assumir a presidência desde que confirmado pelo Congresso. No entanto, depois dessa confirmação, o que se viu no Chile foi uma seqüência de tentativas de desestabilizar o governo da Unidade Popular.


 


Primeiro, com as próprias medidas do Parlamento Chileno, que apesar de assistir ao crescimento da Unidade Popular nas eleições de 73, ainda era dominado pela coalização entre a direita e o centro. Depois, com as passeatas da extrema direita nacionalista que promoviam conflitos e atentados pelas ruas. Porém, o que mais massacrou o governo Allende foram as greves insufladas por empresários. Transportes públicos e caminhoneiros parados num país de difícil locomoção devido à Cordilheira, minaram a saúde financeira de um governo que tentava nacionalizar os lucros da produção de cobre.


 



Mas nem essas ações foram suficientes para derrubar a Unidade Popular que ainda contava com apoio das camadas mais pobres. Foi necessário o violento golpe que bombardeou o palácio La Moneda e assassinou Allende. Quando Pinochet assume, a comida volta aos mercados, as greves param e o comércio com os EUA, boicotado até então, é retomado.


 


É evidente que qualquer comparação dos dois períodos deve levar em conta que enquanto Allende representava a tentativa do Chile de recuperar as minas que estavam em poder das multinacionais, Pinochet é o representante do que Albert Memmi descreveu como a elite latino-americana: dominantes para dentro, dominadas para fora.


 


Portanto, o tal “sucesso” econômico chileno foi artificialmente forjado pela injeção de capital estrangeiro, muito interessado em financiar um governo que atendia a seus interesses. Não é coincidência que o modelo neoliberal, muito comemorado na América Latina durante os anos 90 e hoje condenado nas urnas, teve de ser inaugurado em uma ditadura. Ninguém aceitaria impunemente a supressão de direitos sociais garantidos pelo Estado. Até hoje o Chile não superou suas diferenças: Las Condes, bairro nobre, continua o oposto das poblaciones.


 


Os anos de autoritarismo não cicatrizaram por completo. No final dos anos 90, ao cruzar a fronteira Argentina-Chile, a revista nas malas dos passageiros, a pretexto de buscar produtos que pudessem trazer vírus ou bactérias para a agricultura chilena, ainda cheira à repressão, com livros folheados, perguntas incisivas e a ansiedade nos olhares. Nas conversas de rua, os partidários de Pinochet ainda eram vistos. Com a morte do ditador, é chegada a hora de enterrar de vez sua obra.


 


O papel dos meios de comunicação, ao tratar sobre as feridas deixadas por Pinochet, é lembrar da história. Não se deve esquecer os 3 mil mortos e desaparecidos; que as águas do Rio Mapocho ficaram vermelhas com o sangue dessas vítimas; que Victor Jara foi cruelmente assassinado; que as antigas minas no deserto e as geladas águas do Pacífico são túmulo de quem não aceitou o golpe dos militares, fosse ou não de esquerda. Mesmo que o “sucesso econômico” chileno fosse verdadeiro e natural não justificaria e nem explicaria nenhuma dessas ações.


 



É também essencial a qualquer veículo de comunicação olhar para os fatos com a história nas mãos. Chile é a pátria de grandes poetas – Gabriela Mistral, Pablo Neruda, Violeta Parra – não merece que sua história seja contada apenas por números. Allende, em seu último discurso de dentro do La Moneda, tinha fé que se abririam as alamedas para passar o homem livre. A abertura dessas alamedas já começou, com a recusa do governo de Bachelet em dar honras de Estado a Pinochet e pelo fato de nenhum governo ter lamentado sua morte. Mas deve continuar com a condenação formal do autoritarismo do regime pinochetista em qualquer texto publicado ou falado em qualquer mídia latino-americana. Dessa condenação, Pinochet não vai escapar.


 



Para saber mais:


A Batalha do Chile (La Batalla de Chile). Documentário. Direção de Patricio Guzmán, 1975, Videofilme.
JARA, Joan. Canção inacabada: a vida e a obra de Victor Jara. Rio de Janeiro: Record, 1998.


 



(*) Alexandre Barbosa, jornalista e professor universitário, mestre em Ciências da Comunicação (ECA/USP) e especialista em Jornalismo Internacional (PUC/SP) é pesquisador da mídia latino-americana.