Revolta árabe com execução transforma Saddam em mártir
Uma semana após o enforcamento de Saddam Hussein em uma execução cheia de contornos sectários, sua imagem pública no mundo árabe, antes a de um ditador aprisionado, passou a ser de admiração e respeito. Nas ruas, em jornais e pela Internet, Saddam desp
Publicado 06/01/2007 16:23
Hassan M. Fattah*
em Beirute, Líbano
“Ninguém jamais esquecerá a forma como Saddam foi executado”, disse o presidente do Egito, Hosni Mubarak, em uma entrevista para o jornal israelense “Yediot Aharonot” publicada na sexta-feira e distribuída pela agência de notícias oficial egípcia. “Eles o transformaram em um mártir.”
Na Líbia, que cancelou as comemorações do Id al Adha após a execução, uma declaração do governo disse que uma estátua seria erguida descrevendo Saddam na forca, assim como um monumento a Omar al Mukhtar, que resistiu à invasão italiana à Líbia e foi enforcado pelos italianos em 1931.
Em Marrocos e nos territórios palestinos, manifestantes erguiam fotos de Saddam e condenavam os Estados Unidos. Aqui em Beirute, centenas de membros do Partido Baath libanês e ativistas palestinos marcharam na sexta-feira em um bairro predominantemente sunita atrás de um caixão simbólico representando o de Saddam e posteriormente realizaram uma prece fúnebre. Fotos de Saddam em pé no tribunal, tendo como fundo a Cúpula do Rochedo da Mesquita de Al Aqsa, em Jerusalém, foram coladas nos muros da cidade perto dos campos de refugiados palestinos, elogiando “Saddam, o mártir”.
“Deus amaldiçoe a América e seus espiões”, dizia uma faixa cruzando uma importante via de Beirute. “Nossas condolências à nação pelo assassinato de Saddam e vitória à resistência iraquiana.”
Ao enfrentar o governo em Bagdá e morrer com aparente dignidade, Saddam parece ter virtualmente limpado seu passado. “De repente nós esquecemos que ele foi um ditador e que matou milhares de pessoas”, disse Roula Haddad, 33 anos, uma cristã libanesa. “Todo nosso ódio por ele se transformou em solidariedade, solidariedade para com alguém que foi tratado injustamente por uma força de ocupação e seus colaboradores.”
Há um mês, Saddam era amplamente desprezado como um criminoso que merecia a pena de morte, mesmo com seu julgamento visto como falho. Grande parte do Oriente Médio reagiu com um coletivo maneio de ombros quando ele foi considerado culpado de crimes contra a humanidade em dezembro.
Mas logo após sua execução no último sábado, surgiu um vídeo que mostrava guardas xiitas provocando Saddam, que respondeu a eles de forma calma e firme. Daí em diante, muitos, por toda a região, começaram a vê-lo como mártir.
“O mundo árabe está desprovido de orgulho há muito tempo”, disse Ahmad Mazin al Shugairi, que é apresentador de um programa de televisão do Middle East Broadcasting Center, que promove uma versão moderada do Islã na Arábia Saudita. “A forma como Saddam agiu no tribunal e pouco antes de ser executado, com dignidade e sem medo, tocou os árabes que estão desesperados para que seus próprios líderes tenham orgulho.”
Ayman Safadi, editor-chefe do jornal jordaniano independente “Al Ghad”, disse: “A última imagem para muitos era de Saddam retirado de um buraco. Tudo mudou agora”. No coração da repentina reversão de opinião está o simbolismo da execução realizada às pressas, agora vista como um ato de vingança sectária envolto em teatro político e supervisionado pela ocupação americana.
Em grande parte do mundo árabe predominantemente sunita, o momento da execução, nas primeiras horas do Id al Adha, que é um dos dias mais sagrados do calendário muçulmano, quando a violência é proibida e quando até mesmo o próprio Saddam às vezes libertava prisioneiros, foi visto como um insulto direto ao mundo sunita.
O contraste entre o vídeo oficial de Saddam sendo levado à forca e tendo o laço colocado ao redor de seu pescoço, exibido sem som na televisão iraquiana, e a gravação não autorizada, caótica, granulada, registrando a mesma cena com som, exibindo os milicianos xiitas provocando Saddam, que estava de mãos amarradas, o amaldiçoando ao inferno e elogiando o clérigo militante xiita Muqtada al Sadr, tocou um nervo sectário.
“Ele permaneceu forte como uma montanha enquanto era enforcado”, disse Ahmed el Ghamrawi, um ex-embaixador egípcio no Iraque. “Ele morreu um presidente forte e viveu como um presidente forte. Foi com esta imagem que as pessoas ficaram.”
Daoud Kuttab, um crítico de mídia palestino e diretor da emissora de rádio online Ammannet.net, disse: “Se Saddam tivesse planejadores de mídia, ele não seria capaz de planejar algo melhor que isto. Ninguém poderia imaginar que Saddam morreria com tamanha dignidade”.
Mesmo a imprensa pró-saudita, normalmente crítica de Saddam, fez coro com um tom mais sentimental. No jornal pan-árabe “Al Hayat”, baseado em Londres, Bilal Khubbaiz, comentando os elogios iranianos e israelenses à execução, escreveu: “Saddam, como governante iraquiano, era uma cortina de ferro que impedia a influência iraniana de chegar ao mundo árabe”, assim como “um partido formidável no conflito árabe-israelense”.
Zuhair Quseibati, também escrevendo no “Al Hayat”, disse que o primeiro-ministro iraquiano, Nouri Kamal al Maliki, “deu a Saddam o que ele mais queria: ele o transformou em um mártir aos olhos de muitos iraquianos, que agora podem exigir vingança”.
“O máximo da idiotice”, disse Quseibati, “é o homem que governa Bagdá sob proteção americana não perceber o propósito de apressar a execução, e que a guilhotina leva a assinatura de uma figura xiita enquanto as chamas da divisão sectária não poupam xiitas nem sunitas em um país que lamenta seus cidadãos massacrados”.
Na Arábia Saudita, poemas elogiando Saddam foram repassados por celulares e mensagens de e-mail. “Prepare a arma que vingará Saddam”, alertava um poema publicado em um jornal saudita. “O criminoso que assinou a ordem de execução sem motivo válido nos trapaceou em nosso dia de celebração. Quão belo será quando a bala atravessar o coração daquele que traiu o arabismo.”
Safadi, o editor jordaniano, disse: “Na percepção do público, Saddam era terrível mas aquelas pessoas eram piores. Tal ato final realmente colocou imensamente em risco o futuro do Iraque. E nós todos sabemos que isto é um golpe contra o campo moderado no mundo árabe”.
*Mona el Naggar, no Cairo, Egito; Nada Bakri, em Beirute, Líbano; Rasheed Abou el Samh, em Jidda, Arábia Saudita, e Suha Maayeh, em Amã, Jordânia, contribuíram com reportagem para este artigo.
Fonte: New York Times
Tradução: George El Khouri Andolfato / UOL Mídia Global