EUA, sem voluntários, debatem volta do serviço militar obrigatório

Charles Rangel, representante de Nova York pelo Partido Democrata, anunciou que vai apresentar no Congresso a proposta de volta do serviço militar obrigatório. Apesar da propaganda martelante e da oferta de vantagens, o Tio Sam não consegue alistamentos v

A polêmica voltou a esquentar com o plano do presidente George W. Bush, de mandar mais 21.500 soldados para o Iraque. O Exército americano não consegue voluntários suficientes. Os soldados do Iraque estão “trabalhando” sem parar e muitos tiveram seu tempo de serviço compulsoriamente estendido.



Charles Rangel também argumenta que com o alistamento obrigatório as Forças Armadas teriam um efetivo com maior diversidade econômica e racial. Como os ricos e as camadas médias não querem saber da profissão, há segundo ele um número exagerado de militares  negros e “hispânicos” atualmente. Ele diz acreditar ainda que a obrigatoriedade desestimularia a prática de guerras fúteis (?!?), já que os filhos dos políticos poderiam ser convocados.



O Vietnã e a crise do serviço militar



O parlamentar esquece, porém, que o serviço militar obrigatório também não funcionou. Tanto que foi abandonado pelo então presidente Richard Nixon em 1973, às vésperas da derrota final na Guerra do Vietnã, depois de provocar uma quase rebelião da juventude americana.



O motivo básico era o mesmo de hoje: ninguém queria lutar numa guerra evidentemente injusta. Durante a Guerra do Vietnã, entre 1964 e 1973, 26,8 milhões de americanos atingiram a idade de convocação, mas 60% não serviram. Quinze milhões conseguiram adiar sua convocação legalmente, por exemplo por estarem na universidade. Outros 500 mil simplesmente fugiram do alistamento, e até do país, a maioria destes para o Canadá. Quatro mil deles terminaram presos por ter fugido da convocação.



Tudo isso incendiou os movimentos contra a guerra, sobretudo juvenis e das minorias étnicas. Sim, pois também no sistema antigo os negros e “hispânicos”, ou seja, os pobres, ficaram com a parte pior. Os negros, que eram 11% da população americana, entraram com 15% das baixas no Vietnã.



Tio Sam quer soldados? Então, pague



Nixon, depois de ouvir o papa do pensamento neoliberal, Milton Friedman, optou por uma solução, vamos dizer, “de mercado”: Tio Sam quer soldados? Então, pague por eles.



Implantou-se assim o sistema voluntário — um termo que encerra não pouca hipocrisia, pois o mais correto seria dizer mercenário. Mas também entrou em curto-circuito, exatamente no Iraque, a primeira ação militar em grandes proporções dos EUA depois do Vietnã.



Os furos do sistema mercenário



O sistema, para começar, é ostensivamente antidemocrático e anti-republicano. Os soldados profissionais do Tio Sam são como tantas outras profissões duras, perigosas, mal pagas e sem glamour dos EUA, taxista, lixeiro, faxineiro, garçom: ficam para as minorias pobres (que hoje incluem numerosos brasileiros, curiosamente incluidos de cambulhada na categoria de “hispânicos”). Os “Wasp” (“brancos, anglo-saxões e protestantes”) pulam fora.



Além disso, é um sistema caro. Calcula-se que cada aumento permanente de 10 mil soldados custa US$ 1,2 bilhão anuais, ou US$ 120 mil (R$ 255 mil) por cabeça. Isso sem contar por exemplo os gastos com propaganda do alistamento — uma particularidade que choca os estrangeiros que visitam os EUA.



Mas o principal problema é que ele não funciona quando está em curso uma guerra para valer. Hoje os militares da ativa nos EUA somam 1,4 milhão, quando eram de 2 a 3 milhões sob a guerra fria e o sistema de serviço militar. E logo quando Bush precisa de mais 21 mil para o Iraque, não há propaganda que convença os jovens americanos. Pelo contrário, crescem entre os alistados os movimentos rebeldes.



A polêmica está longe do fim. Já existe quem proponha uma radicalização do mercenarismo: se a carne-para-canhão estadunidense é cara e escassa, por que não importar mercadoria mais em conta? Por que não seguir o exemplo da França colonialista de outrora, com sua Legião Estrangeira, de mercenários contratados no mundo inteiro? Quantos não seriam os jovens mexicanos, ou haitianos, africanos ou brasileiros (…) dispostos a matar e morrer por um pagamento em verdes notas de dólar?



Lições da Revolução Americana



O que a sociedade estadunidense ainda não discute com a merecida seriedade é a natureza das guerras em que Washington a enfia. Dois séculos e tanto atrás, os “pais da pátria” não tiveram dificuldades para recrutar voluntários nas Treze Colônias e enfrentar o colonialismo inglês. Este era poderoso, tinha o melhor exército e marinha da época (mercenários), mas foi derrotado pela Revolução Americana (1775-1781). Por quê? Porque conduzia uma guerra injusta de opressão e domínio.



É o que acontece agora, com sinais trocados, e os EUA no papel de invasores, ocupantes e opressores. Em conflitos dessa natureza, é inevitável o alastramento de tensões e deformações no exército opressor. E este tem sido sempre uma reserva estratégica (às vezes importantíssima, como no Vietnã) a favor das forças que resistem a ele.