Somália, Etiópia, entenda melhor o Chifre da África
O primeiro ministro da Etiópia, Meles Zenawi, deve ter andado a estudar os magníficos feitos da invasão preventiva do Iraque pelos EUA e da recente incursão de Israel no Líbano. Evidentemente decidiu seguir esses exemplos. Seu argumento é idêntico ao
Publicado 21/01/2007 21:46
Em cada um dos casos citados, o invasor estava certo de sua superioridade militar e achava que a maioria da população poderia aclamar os atacantes como se fossem seus libertadores. Zenawi afirma que está colaborando com os EUA em sua luta contra o terrorismo pelo mundo afora. E efetivamente os EUA ofertaram-lhe não só apoio na área de inteligência mas também sua força aérea e unidades das tropas especiais, que ajudam os etíopes.
Apesar de tudo, cada realidade local é um pouco distinta. Vale a pena revisitar a história recente do que tem sido chamado ''Chifre da África'', cujos países mudaram de esfera geopolítica com bastante facilidade nos últimos 40 anos.
O país que deu suas cores à causa africana
Ao longo da primeira metade do século 20, a Etiópia foi o símbolo da resistência africana face ao imperialismo europeu. Os etíopes derrotaram as tropas colonialistas italianas em Adowa, em 1896, e o país continuou independente.
Quando a Itália fez nova tentativa, em 1935, o imperador Hailé Selassié foi à Sociedade das Nações (precursora da ONU) e suplicou a todos os países-membros que oferecessem uma proteção conjunta contra a invasão. Não recebeu nenhuma ajuda.
Assim a Etiópia se transformou em símbolo para a África e para a comunidade negra. As cores de sua bandeira converteram-se nas cores da África. E, ao fim da 2ª Guerra Mundial, a independência etíope foi restaurada.
Na difícil gênese da Organização de Unidade Africana (OUA), em 1963, Haile Selassie usou seu prestígio para jogar um papel fundamental como intermediário entre os diferentes Estados africanos. A OUA estabeleceu sua sede na capital da Etiópia, Adis Abeba.
No entanto, embora a Etiópia jogasse este papel simbólico em plano da África, também contava com uma máquina de Estado opressiva e aristocrática. Quando as agudas fomes começaram a se converter numa praga nacional, nos anos 70, o descontentamento da população aumentou rapidamente. Em 1974 um oficial do Exército, Mengistu Haile Mariam, liderou uma revolução contra a monarquia ''deudal'' e estabeleceu um governo militar que logo se proclamou marxista-leninista.
Cenários étnicos etíope e somali
Antes de Mengistu, as relações entre EUA e Etiópia tinham sido cordiais. Já a Somália, país vizinho da Etiópia, abusara de suas relações com Washington. Também este país vivia sob um governo militar, liderado por Siad Barre. No entanto, autoproclamava-se ''socialista científico'' e mantinha relação bastante boa com a União Soviética, a quem oferecera uma base naval.
Depois do golpe de 1974, quando Megistu proclamou seu governo como marxista-leninista, a União Soviética abandonou a Somália e apoiou a Etiópia, maior e mais importante. Em compensação, os EUA apoiaram a Somália, e ficaram com a base naval.
Para entender o que aconteceu depois é preciso alguma análise étnica dos dois países.
A Etiópia é um antigo reino cristão, largamente dominado pela aristocracia dos amhara. Existe outro grande grupo cristão, os tigre, que falam uma língua diferente. Também há dois outros grupos bastante numerosos no país: os oromo (metade dos quais são muçulmanos) e os somali, muçulmanos.
Além disso, no fim da 2ª Guerra a Etiópia absorveu a colônia costeira italiana da Eritréia. Sob o mandato de Selassié, apenas os Amhara contavam e a Eritréia manitnha uma guerra por sua independência. Sem a Eritréia, a Etiópia não tinha saída para o mar.
A Somália era bastante diferente. Tinha havido duas colônias, a Somália Italiana e a Somália Britânica. A Somália Italiana ascendeu à independência em 1960, no momento em que a Itália liquidava suas colônias; e a Britânica foi incluída nesse processo.
Nos anos 60, quando os conflitos étnicos começaram a ser uma praga em muitos países africanos, costumava-se dizer que o único país africanos que jamais conheceria um conflito étnico era a Somália, já que praticamente toda a população era etnicamente somali, falava somali e praticava o islamismo.
As derrocadas pós-Guerra Fria
Os habitantes de ambos os países estavam irritados com suas respectivas ditaduras. Quando a Guerra Fria terminou, os dois governos não conseguiram resistir. Tanto Mengistu como Barre foram derrubados em 1991.
No lugar de Mengistu, chegou ao poder um movimento de libertação chamado Tigre, que no princípio se decantou por uma linguagem nacionalista e maoísta. Para diferenciar-se de Mengistu, aceitou a independência da Eritréia, embora depois tenha se arrependido. O domínio cristão (ou melhor, amhara) se converteu na maior preocupação do novo governo e as revoltas dos oromo e somalis começaram. Ativistas pelos Direitos Humanos não crêem que o governo de Zenawi seja melhor que o de Mengistu.
Na Somália, o estado étnico ''perfeito'' veio abaixo quando os clãs somalis começaram a lutar entre si pelo poder. Antes de 1991, os EUA começaram a se aproximar do novo líder da Etiópia, Meles Zenawi, que abandonou por completo seu ''maoísmo''. Abandonaram a Somália ao relento.
Quando os EUA enviaram tropas ao país, numa ''missão humanitária'' para sufocar desordens, depararam-se com uma terrível derrota que recebeu o nome de Blackhawk Down (Falcão negro Derrubado) e retiraram as tropas.
Veio depois uma longa guerra civil entre diferentes bandos. Em 2006, um grupo chamado União de Tribunais Islâmicos tomou a capital, Mogadíscio, e expulsou os líderes dos clãs feudais, restaurando deste modo a paz, assim mesmo relativamente, pela primeira vez em uma década.
Problemas ba Somália, e na Etiópia
Os EUA viram na União dos Tribunais Islâmicos uma cópia exata do Talibã que se aliou com a Al Qaeda. Zenawi fez o mesmo.
Foi assim que a Etiópia decidiu invadir a Somália, desbancar a União dos Tribunais Islâmicos e apoiar o debilitado governo central que existia, só no papel, desde 2004, mas não conseguira nem sequer entrar na capital.
É claro que a Etiópia (e com ela os EUA) ganhou a primeira rodada. A União dos Tribunais Islâmicos abandonou Mogadíscio.
Porém os somalis não recebem os etíopes como libertadores. Os líderes dos clãs estão lutando novamente entre si e Mogadíscio afunda cada vez mais no caos. O governo da Etiópia se defronta agora com problemas, cada vez maiores, não só na Somália mas também dentro de casa.
Assim como Israel deve se retirar do Líbano, e assim como os EUA terão que ir embora do Iraque, também a Etiópia precisará brevemente retirar-se da Somália. A situação somali não vai melhorar graças a esse ataque preventivo. Os ataques preventivos são sempre bumerangues em potencial. Ou se vence esmagadoramente, ou se perde com estrépito.
* Sociólogo estadunidense, especialista em temas da África pós-colonial, autor de O sistema mundial moderno (1990); os intertítulos são do Vermelho