50 anos depois, fala o herói da Batalha de Argel

A Batalha de Argel completa 50 anos este ano. Não o belo filme de  Gillo Pontecorvo, proibido na França durante quatro décadas, que é de 1966. Mas o fato histórico que inspirou o filme, a sublevação popular na então colônia da Argélia, esmagada a fer

Ele usa jeans, um velho pulover negro e um boné. Com um podão na mão, recebe as visitas pedindo desculpas pelos trajes.


 


Não se trata de um jardineiro, mas de Yacef Saadi, o homem mais perseguido da Argélia em 1957, com a cabeça posta a prêmio pelo exército francês, o antigo ''felagá'' (guerrilheiro anticolonialista argelino) importalizado pelo filme de Pontecorvo — onde ele desempenha o seu próprio papel.



Um homem amado ou execrado



''Quando os ''paras'' (paraquedistas) me prenderam, em 24 de setembro de 1957, Massu (general Jacques Massu, comandante das tropas coloniais e teórico do uso da tortura contra a guerra revolucionária) exclamou: 'Aí está, acabou a Guerra da Argélia!'. Não é preciso dizer que ele estava enganado'', sorri este homem pequeno e vivo, hoje com 78 anos de idade, percorrendo o pátio de sua bela casa com piscina, nas colinas de Argel.



Sobre Yacef Saadi fala-se tudo e o seu contrário. Quem o conheceu como responsável pela Zona Autônoma de Argel (ZAA) continua a venerá-lo. Refere-se a ele como ''um chefe fantástico'', com ''autoridade natural'', sabendo tecer em torno de si ''verdadeiros vínculos de fraternidade e solidariedade''. Outros o execram e recordam apenas a personalidade ''recuperada pelo poder'', o senador várias vezes nomeado pelo presidente Buteflika e dono, comenta-se de ''uma imensa fortuna''.



A ''greve dos oito dias''



Pouco importa. Saadi, o menino da Casbah (a parte antiga de Argel), é um insubstituível ator e testemunha da ''Batalha de Argel'', uma vitória militar para a França, mas também uma demolidora derrota política. Do lado argelino, a expressão é rejeitada, pois não se tratou de uma batalha, com armas iguais, mas de uma ''operação de limpeza'' do exército francês, ''uma assustadora escalada da repressão e da tortura''.



A ''greve dos oito dias''? Yacef Saadi recorda seus protestos quando o estado-maior da revolução argelina, o Comitê de Coordenação e Execução (CCE, ao qual pertenciam Abane Ramdane e Larbi Ben M'Hidi) decidiu lançar esta operação, a exatos 50 anos, em 28 de janeiro de 1957. O objetivo é chamar a atenção da ONU para a questão argelina. Uma semana, advertiu então Aaadi, um homem da base, ''é demais''. A população não suportaria tanto tempo, mesmo que a Frente de Libertação Nacional (FLN) cuidasse de abastecer previamente as famílias mais pobres.



De fato, a greve é rompida ao fim de três dias. Os ''paras'' derrubam as portas metálicas das lojas, ordenam a reabertura dos quiosques e detêm os comerciantes que recalcitram. A Casbah, zona ''libertada'' pela FLN, não tarda a ser retomada pelo exército colonial. A ZAA terminará decapitada, com a morte de Ali la Pointe, em 8 de outubro de 1957. O lugar-tenente de Yacef Saadi e três de seus jovens companheiros de combate recusam a rendição e morrem estraçalhados pelos ''paras''.



''Foram os melhores anos!''



Torturas. execuções sumárias. Estupros. Internamentos em campos de concentração… Tudo é bom, naquele ano, para ''limpar'' Argel da FLN, pôr fim aos atentados que ensanguentam a população européia desde o outono de 1956 e criam a psicose, para desencorajar os argelinos de se passarem para o campo independentista.



Não adianta. É o contrário que acontece. ''Amigo, se você tomba, um amigo sai das sombras e ocupa o seu lugar. Amanhão o inimigo conhecerá o preço do sangue e das lágrimas'', cantarola de repente Saadi, enquanto anda pelo jardim, ainda empunhando o podão. ''Eu gostava desta canção guerrilheira, principalmente cantada por Yves Montand! Lembro também que eu me identificava com Chen, o herói de A condição humana (de André Malraux). Eu admirava sua coragem, o fato de lutar por uma causa'', sorri, saudoso.



O ex-chefe da ZAA não guarda apenas lembranças trágicas dessa época. Longe disto. ''Nós nos divertíamos, brincávamos, provocávamos Massu (chefe da 10ª Divisão de Para-quedistas). Foram os melhores anos! Eles deram um sentido à minha vida.''



Zohra Drif, auxiliar de Saadi capturada no mesmo dia que ele, concorda. Transformada em advogada e senadora, em 1957 ela tem apenas 19 anos e vive toda a Batalha de Argel escondida na Casbah. Natural de Ora, a jovem imagina a velha cidade como ''um lugar mal-afamado'', quase ''um bordel a céu aberto''. Na verdade, descobre pequenos edifícios da era otomana, de uma assombrosa beleza, limpos, ornados de mármore, ladrilhos, flores… Oculta sob um ''aïk'' branco, ela perambula pelas ruelas escuras que desaguam ''em manchas de luz''. Zohra Drif surpreende-se com a miséria dos moradores, e mais ainda com ''a solidariedade e a extrema generosidade'' de que dão prova.



''Sim, vocês podem falar em terrorismo''



Com sua cabeleira branca, seus olhos azuis e silhueta elegante, Habib Reda mantém, aos 86 anos, a reputação de homem bonito. Este antigo ator de cinema e teatro, com uma voz que todos reconheciam na Rádio de Argel dos anos 50, é hoje um cidadão americano. Divide sua vida entre Argel, Paris e Tampa, na Flórida, onde vivem seu filho e seus dois netos.



Ele não se vangloria de nada. Dem de ter sido barbaramente torturado, no verão de 1957, na Escola Sarouy, um dos piores centros de interrogatório. Nem de ter instalado bombas, ele, um homem culto, que lia Molière e Shakespeare em todos os palcos da Argélia.



Foi ele quem praticou o ''atentado das lâmpadas'', que deixou oito mortos e sessenta feridos em Argel, em 3 de junho de 1957. ''Sim, vocês podem falar em terrorismo. Mas acreditem se quizerem: na véspera deste atentado, no próprio dia, e nas noites seguintes, eu não dormia'', confessa o antido mujahedjin. ''Nós usávamos as bombas a contragosto. Não são coisas que se esquece facilmente. Mas não tínhamos outra escolha para nos fazermos ouvir…''



Preso e condenado à morte por duas vezes, Habib Reba escapa da guilhotina — como Yacef Saadi e uma centena de outros — graças a uma anistia geral proclamada por de Gaulle quando este chega ao poder. ''Quando me perguntam o ano de meu nascimento, respondo sempre: 1958!'', conta o veterano artista, rindo. No fim dos anos 70, ele e sua mulher foram até o túmulo do general de Gaulle, em Colombey-les-Deux-Eglises; e numa pequena livraria na praça central do vilarejo comprou as Memórias daquele que salvou sua vida.


Hoje: ''Os vivos trairam os mortos''



Desilusão. Não há outra palavra para classificar a Argélia de hoje. ''O que fizemos nós da nossa independência?'', interrogam-se todos eles.



No seio da população, o desencanto é profundo. Há desconfiança de que as comemorações vindouras redundem apenas em recuperação do poder.
''Quem poderia imaginar que a Argélia ficaria assim? A injustiça, a miséria, a corrupção em grande escala… Os vivos trairam os mortos. Eu não guardo tanta amargura da França como dos meus compatriotas. Eles trairam os ideais da Revolução'', assinala calmamente Ali Hattab, professor de medicina e filho de um ''chahid'' (mártir).



''Nossos pais se sacrificaram para que pudéssemos viver num país justo, livres da 'logra' (humilhação). Porém a 'logra' continua aí. Os 'puros' morreram. As pessoas no poder são os novos colonos da Argélia'', dispara, desabusado, um jornalista que também é filho de ''chahid''.



''A independência da Argélia? Sim, nós a conseguimos'', resume em voz calma e doce Abdelhamid Mehri, antigo ministro do Governo Provisório da República Argelina (GPRA). Mas agrega: ''Quanto à libertação, esta ainda está por conquistar''.
* Trechos; intertítulos do Vermelho



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