Ferreira Gullar e Carlos Lyra passam a limpo o CPC da UNE

Em um encontro inédito na história da cultura popular brasileira, Carlos Lyra e Ferreira Gullar contaram a estudantes sobre sua juventude durante a década de 60, quando atuavam no Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (UNE). O bate

O encontro, intitulado ''O Diálogo Musical – Canções e Poemas que Marcaram a História do Movimento Estudantil'', faz parte do Projeto Memória do Movimento Estudantil. Entre outras atividades, o projeto está realizando uma exposição sobre os 70 anos da UNE na 5ª Bienal de Arte, Ciência e Cultura da entidade. O festival ocorre no Rio de Janeiro (RJ).


 


Num tom descontraído e despojado, Gullar e Lyra falaram aos estudantes que o convite, feito então por Oduvaldo Viana Filho – o Vianinha -, para fundar o CPC veio em excelente momento. Os dois artistas passavam por uma crise de sua estética no período.


 


Poema Enterrado
Gullar já não via mais sentido na poesia concreta, e Lyra sentia a necessidade de se libertar da influência do jazz na sua bossa nova. ''A bossa nova era aquela coisa, um violão, perfume e amor; nada contra, mas faltava alguma coisa'', declarou Lyra. Poema enterrado foi definido por Gullar como um marco desta crise pela qual o escritor passava.


 


''Quando eu vi o Poema Enterrado em uma sala no fundo do chão, com três cubos, toda essa estrutura para conter apenas uma palavra – 'rejuvenesça' -, me perguntei se não estava me transformando em arquiteto ou escultor'', disse Gullar, referindo-se à estrutura construída na casa de Hélio Oiticica em referência ao poema.


 


A participação de ambos na fundação do CPC deu novo rumo e novas respostas para suas estéticas. Se antes a preocupação com a forma era absoluta, agora o conteúdo é o que mais importava. Era preciso fazer arte engajada – e o CPC foi o espaço em que esse gênero pôde alçar vôos maiores.


 


A experiência do CPC
Artistas, estudantes e intelectuais, unidos pelo objetivo de transformar o país a partir da ação cultural capaz de conscientizar as classes trabalhadoras, fundam o CPC. Inspirado no pernambucano Movimento de Cultura Popular, MCP, de Miguel Arraes, o CPC, multiplicado em inúmeros grupos espalhados pelo País, leva ao povo uma cultura popular criada para promover a revolução social.


 


Insatisfeito com a atuação restrita do Teatro de Arena em um tempo de grande efervescência político-cultural no país, Oduvaldo Vianna Filho propõe a criação de um elenco que vá em busca de um público popular. Didatiza a teoria marxista da mais-valia em um texto teatral e, com o Teatro Jovem, monta A Mais-Valia Vai Acabar, Seu Edgar. O êxito da iniciativa e, ao mesmo tempo, a necessidade de uma maior e mais abrangente organização, aproxima o grupo da UNE.


 


Surge então, no ano de 1961, o primeiro Centro Popular de Cultura da UNE. ''O CPC não nasceu na UNE, mas com certeza ganhou muito ao se somar a ela'', disse Lyra. O contato com outros artistas e a ebulição política pela qual passava o meio cultural do momento transformou a estética de ambos. Ferreira Gullar ilustrou a guinada de sua obra comparando Poema Enterrado com poemas de seu livro Cultura Posta em Questão, escrito no período do CPC. No livro a preocupação com a denúncia da vida de camponeses e operários daquele Brasil é tema constante de seus versos.


 


Forma e conteúdo
Seguindo a linha desta comparação Carlos Lyra cantou para público Lobo Bobo, composto no período de sua bossa nova, estabelecendo um diálogo crítico com as canções compostas para as peças teatrais do CPC, como A Mais Valia Vai Acabar, Seu Edgar. ''A preocupação com o conteúdo se tornou mais premente do que com a forma'', disse Gullar. Embora o CPC fosse formado por artistas pequeno-burgueses da cidade do Rio de Janeiro, a sua obra e o seu conteúdo dirigiam-se ao povo.


 


Esta contradição não ficava à margem dos espetáculos que, muitas vezes, sofriam com a baixa presença do público mesmo tendo entrada franca. ''A qualidade do que foi produzido pelo CPC nem sempre, ou quase sempre, não era das melhores, sua intenção maior era ter essência política, ás vezes, até mesmo sectária'', declarou o escritor. 


 


O dia em que a sede da UNE – e também do CPC – foi queimada na Praia do Flamengo foi relembrado em detalhes por Gullar, que chegava, coincidentemente, em frente ao prédio no momento em que o incêndio acontecia. Cena a cena, o desespero, a apreensão, os tiros, o prédio em chamas saiu das fotos históricas para tomar forma nas palavras do escritor, que em abril de 1964 presidia o CPC. ''Eu estava dentro da sede no momento dos tiros e das chamas. Naquele dia, saímos derrotados e pela porta dos fundos da UNE.''


 


Naquele dia, o chamado Comando Geral dos Artistas se reunira à noite na casa de Carlos Lyra e em busca de saídas. Não havia mais nada a fazer e, em pouco tempo, apesar da resistência, o CPC deixou de existir. Funda-se mais tarde o Teatro Opinião, que segundo alguns críticos é o verdadeiro legado do CPC. É no Teatro Opinião que a forma volta a ter importância para a estética de ambos, desta vez sem perder de perspectiva o conteúdo.


 


Do CPC às Bienais
Ferreira Gullar valorizou a Bienal da UNE e disse ''que toda e qualquer iniciativa para fomentar a cultura brasileira é fundamental. A cultura é fundadora de uma sociedade''. Para ele, o problema não é apenas o que se distribui, mas, sim, o que se produz. ''Artistas têm muitos, mas que produzem algo que realmente interessa, nem tantos'', disse minutos antes do encontro.


 


Segundo Carlos Lyra, é preciso intensificar o contato entre os artistas e os estudantes. ''O CPC não era uma experiência dos estudantes, mas, sim, dos artistas que pensavam e produziam cultura com os estudantes'', declarou. Ao final do encontro, o compositor se pôs à disposição da UNE para novos projetos e diz que pretende visitar as universidades brasileiras para falar mais de sua experiência musical e do CPC.


 


Com seu violão, Lyra encerrou o encontro cantando o Hino da UNE e Subdesenvolvido. O hino foi composto por ele e por Vinícius de Morais no período do CPC. ''Vamos lançar um CD em breve com as canções daquele momento, inclusive o Hino da UNE'', disse Lyra. As duas canções são símbolos de uma época em que ser da UNE era o mesmo que ser contra a ditadura.