Audicéa Rodrigues: Frevo, cem anos de resistência popular

Gênero musical genuinamente pernambucano, o frevo nasceu no Recife no seio das classes trabalhadoras, que no final do século 19 se organizaram em agremiações carnavalescas denominadas “clubes pedestres” e passaram a ocupar os espaços urbanos antes domi

É nesse clima de embate que surge o frevo como expressão máxima do carnaval popular e de resistência, refletindo as mudanças sociais que começavam a ocorrer e estabelecendo uma nova correlação de forças entre os trabalhadores urbanos e a elite intelectual e econômica de Pernambuco.


 


Segundo a antropóloga Rita de Cássia Barbosa de Araújo, da Fundação Joaquim Nabuco, a partir de meados do século 19, a melhoria das condições urbanas do Recife, como calçamento, saneamento e iluminação, despertaram a cobiça das classes dominantes que se mostraram interessadas em ocupá-los não só para as tarefas cotidianas, como também para as suas manifestações religiosas, cívicas, políticas e pelo carnaval.


 


“Espelhados no modo de vida burguês europeu, passaram pouco a pouco a se identificar com a nova paisagem que se projetava edificar na cidade, procurando conformá-lo à imagem dos grandes centros urbanos d'além mar. Era também por ocasião das celebrações públicas que a sociedade representava a si mesma. Seus vários grupos e classes sociais eram postos lado a lado, o que permitia vislumbrar as relações de força que estabeleciam entre si”, explica a antropóloga.


 


A burguesia reage
As elites urbanas e a classe média emergente do Recife também desejavam substituir o Entrudo, festa carnavalesca de origem portuguesa, considerado grosseiro, bárbaro, violento, por uma diversão nos moldes das festas realizadas em Veneza e Paris. “O carnaval deveria converter-se num belo espetáculo, produzido pelas camadas ricas e letradas, para ser contemplado e aplaudido por todos”, afirma Rita de Cássia.


 


O que de fato ocorreu no ano de 1880 e nos primeiros anos do século 20, quando as ruas centrais do Recife foram invadidas por cortejos de carros alegóricos e de críticas das sociedades carnavalescas criados pela burguesia recifense.


 


“O carnaval das críticas e das máscaras era exigente, tanto em termos econômicos quanto culturais. Para manejar com maestria o florete da verve, era necessário ter pleno domínio sobre a gramática e estar bem informado sobre os acontecimentos da realidade. Pré-requisitos que excluíam de suas fileiras a imensa maioria da população, composta por pobres e analfabetos, a quem a elite destinava o lugar de humilde espectador do espetáculo por ela produzido”, analisa a pesquisadora da Fundaj, adiantando que “excludente e elitista, a burguesia não hesitava em tratar como caso de polícia qualquer tentativa de aproximação das camadas populares desta forma de diversão.”


 


Entretanto, ao tentar ocupar os espaços urbanos as elites recifenses se depararam com uma cidade “plena de vida e de história, carregada de memória, símbolos e significados” para os pobres, negros e mestiços, que desde o início da colonização utilizavam esses espaços não só como local de trabalho, mas de socialização e diversão.


 


“Ao tentarem excluir ou mesmo impor limites às ações e à mobilidade espacial das camadas populares nas áreas livres da cidade, as elites se depararam com forte resistência por parte de seus usuários tradicionais. Assim, apesar das posturas municipais proibirem o Entrudo, pelo menos desde 1822, o jogo continuou a existir por décadas afora”, explica Rita de Cássia.


 


Troca espontânea
A partir da década de 1880, surgem os clubes pedestres, assim denominados em razão da forma como se apresentavam, a pé, em cortejos processionais, com seus estandartes à frente e os sócios formando os cordões. Um formato que se contrapunha aos dos clubes de alegoria, cujos participantes vinham sobre carros. A repressão policial e o preconceito das elites contra o folguedo popular, que perduraram por alguns anos, não arrefeceram o espírito contestador de carnavalescos e foliões.


 


Da troca espontânea entre os animados foliões e as orquestras de metal das bandas marciais, “no calor dos corpos” surgiu a marcha carnavalesca pernambucana. Fruto da evolução dos dobrados de inspiração militar, polcas, maxixes, quadrilhas e modinhas, que ganharam “novas formas e combinações” nasce, então, o frevo pernambucano, com sua música, sua dança e sua efervescência tão características e envolventes.


 


Os capoeiras, desordeiros e valentões que vinham à frente das bandas de músicas foram fundamentais no processo de criação do frevo. Os golpes da luta, adaptados ao ritmo das marchas e disfarçados da polícia, originaram uma série de passos que vieram a compor a dança. “Os acordes excitantes dos metais repercutiram nos músculos e sentidos daqueles sujeitos sem amarras, inspirando-lhes os movimentos da dança, quase sempre individuais, como se estivessem num permanente estado de alerta, a sugerir agressividade ou defesa”, ressalta a antropóloga Rita de Cássia.


 


O mundo do trabalho e as ocupações profissionais de seus integrantes foram traduzidos nas denominações dos primeiros clubes: Pás, Vassourinhas, Espanadores, Abanadores, Suineiros, Verdureiros, Empalhadores. Os passos do frevo também faziam essa referência: tesoura, ferrolho, parafuso, dobradiça e locomotiva.


 


A partir de 1904, em resposta à resistência popular, a visão e o tratamento dispensados às manifestações começaram a mudar. “A polícia, instância do poder público mais presente no cotidiano das camadas populares, adotou uma nova orientação: passou de violenta, arbitrária e repressora à guardiã dos préstitos das agremiações carnavalescas, ao menos daquelas que se dispunham a colaborar. Os representantes do poder público tencionavam, assim, aproximar-se do povo, do cidadão comum, especialmente da classe trabalhadora, e conquistar-lhe a confiança”, afirma a pesquisadora da Fundaj.


 


O batismo
Segundo Rita de Cássia, os jornais locais começaram a adotar um tom mais conciliador ao se referir aos dois carnavais: o popular e o das elites. O Jornal Pequeno já procurava estimular os folguedos populares. Tanto que em sua edição do dia 9 de fevereiro de 1907, um sábado de Zé Pereira, o jornal recifense grafava pela primeira vez o vocábulo frevo, lavrando assim a “certidão de nascimento” do gênero musical.


 


A elite e a classe média tentaram manter-se afastadas daquela turba de miseráveis carnavalescos, refugiando-se nos bailes ou desfilando em carros ornamentados, entre familiares e amigos. “Por volta de 1909, um grupo ligado aos clubes de alegoria e crítica tentou, inutilmente, construir um carnaval de rua só para si, mas numa outra data, durante a Mi-Carême. Pouco depois, porém, os clubes pedestres passaram a fazer uso da festa, e com muito mais êxito”, afirma Rita de Cássia.


 


Segundo a antropóloga “para aqueles que sonharam ver a cidade representada por espetáculos grandiosos, protagonizados pela gente fina e elegante, admitir o fato tornava-se duplamente penoso, pois, além de significar uma derrota no plano político-ideológico, implicava reconhecer a vitória de um outro carnaval: o carnaval popular, contra o qual tanto se opuseram”.


 


Nos últimos cem anos, o frevo pernambucano resistiu e continua autêntico e vigoroso. Repetindo-se a cada carnaval, sem se curvar às influências de ritmos alienígenas que o ameaçam de vez em quando. Isso graças a sua essência e conteúdo que o identificam como uma das principais expressões culturais de Pernambuco e do Brasil.