Gás e 2/3: Bolívia viveu dois partos difíceis em um dia
Em um só dia nós, bolivianos, recebemos duas boas notícias. Por um lado, o presidente Evo Morales obteve um incremento de 11% no preço do gás que vendemos ao Brasil. Por outro, os delegados à Assembléia Constituinte acordaram uma fórmula que aproxima mais
Publicado 17/02/2007 12:25
A negociação com o Brasil esteve a ponto de fracassar. Ambos os países começaram a emitir sinais ameaçadores e pouco auspiciosos. Mas no final as nuvens se dissiparam com um abraço entre Lula e Evo.
“Solidariedades” conflitantes
Ambos os governos tiveram que ceder, o que é muito bom. Tanto Evo como Lula cederam um pouco, porque ambos têm a responsabilidade de zelar pelos melhores in teresses de seus concidadãos. Não se poderia pretender que o Brasil cedesse “por solidariedade”, porque uma tal solidariedade para com os bolivianos representaria ao mesmo tempo uma falta de solidariedade para com os próprios brasileiros.
Não era possível obter do Brasil o mesmo preço que a Argentina paga, de US$ 5 por milhão de BTUs, mor mais que Lula seja amigo de Evo. Em compensação, consignou-se um aumento de 11%, que é significativo, pois nivela o preço do gás vendido com os preços internacionais, e permite à Bolívia arrecadar US$ 144 milhões anuais, que não serão nada maus para os problemas sociais, embora não sejam os US$ 300 milhões que o governo do MAS [partido de Evo Morales] desejava.
Horas antes fora anunciado que o preço do gás vendido através do gasoduto de Mato Grosso, com destino a Cuiabá, fora nivelado em US$ 4,2 por milhão de BTUs. Esta era uma reivindicação justa e necessária, embora de sentido mais simbólico, pois trará ao país apenas US$ 44 milhões adicionais: o volume da exportação para Cuiabá representa apenas 4,4% do total exportado para o Brasil, enquanto o volume destinado a São Paulo corresponde aos restantes 95,6%.
Estamos diante de um “empate técnico”. Porém a Bolívia ganha de qualquer maneira, pois não jogou em casa. Oxalá não se use este novo acordo bilateral para desencadear uma dessas escaladas triunfalistas que embriagam a população.
O rolo coimpressor era pequeno
A outra boa notícia vem de mais perto, de Sucre [cidade que sedia a Assembléia Constituinte]. Finalmente, depois de sete longos meses de confrontações estéreis em que recebiam salários sem nada fazerem pelo país, os constituintes chegaram a um acordo sobre a aprovação da Constiotuição Política do Estado, por dois terços dos votos.
Também aqui o MAS teve de ceder, pouco a pouco, até aceitar a realidade: não era possível usar o rolo compressor, pois era um rolo compressor pequeno para a tarefa. Ceder, aqui, embora pareça uma derrota política, de qualquer modo beneficia a Bolívia.
Este foi outro empate, não um fracasso. Em toda negociação as partes têm que buscar um ponto de encontro, onde as coincidências pesem mais que as diferenças. Foi o que se conseguiu agora e é portanto uma boa notícia.
Caminho difícil pela frente
No entanto, o caminho a percorrer na Constituinte não é fácil. Quem o disse, com base em sua própria experiência, foi um visitante diligente, Antonio Navarro Wolf, um senador colombiano com irretocável trajetória de esquerda — foi dirigente do grupo guerrilheiros M-19, negociador da paz e mais tarde candidato à presidência da Colômbia. No Congresso, foi um dos três presidentes da Constituinte que em 1991 aprovou a nova Constituição. O político colombiano também se mostrou surpreendido com o clima de agressividade e confronto que observou nos debates em Sucre.
O tempo urge, e os mecanismos da Constituinte não são propriamente muito fluidos. Os partidos atuam tal como no Congresso, guiados por interesses sectários e não por uma noção do bem comum. Conta-se nos dedos das mãos os que pensam realmente no país. A Constituinte é composta por dez pessoas honestas (como Loyola Guzmán), trinta politiqueiros manhosos (como Zamora) e duas centenas de “levanta-mãos” que apenas seguem as orientações de seus partidos.
Ao meu ver – já o disse muitas vezes – a Assembléia Constituinte não tem futuro, pelo menos dentro do prazo que a lei fixou. Oxalá eu me engane. Quero mesmo estar errado. Mas, vistas as coisas da perspectiva de meados de fevereiro, parece-me impossível que se possa discutir uma nova visão do país em tão pouco tempo e com a seriedade necessária.
Preocupa-me também que a Constituinte passe por alto sobre muitos temas importantes que não estão na lista de prioridades dos políticos. Os temas ambientais, de gênero, o direito à comunicação… são alguns dos que me parecem relegados.
O Evo que negocia
Ainda assim, as duas boas notícias mostram uma mudança qualitativa nas atitudes do governo: flexibilidade e disposição para negociar. Parece que o governo finalmente se deu conta de que não chegará a parte alguma com prepotência e soberba. É melhor flexibilizar posições e dialogar.
Dois partos difíceis, de mãe solteira, os bebês dependem dos cuidados dos tios… Não vai ser fácil.
* Escritor, jornalista, cineasta e fotógrafo boliviano
Fonte: www.bolpress.com