MST não tem razão quando ataca o etanol

O Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra assinou e divulga um manifesto contra a expansão da cana no Brasil e na América Latina. “A destruição do meio ambiente e a superexploração do trabalho” são ''características inerentes da indústria da cana'', conclui

O manifesto traz o título Tanques cheios as custas de barrigas vazias: a expansão da indústria da cana na América Latina. O ponto de partida é a justa denúncia do colonialismo, do latifúndio, da superexploração e da escravidão que marcam há mais de quatro séculos a empresa canavieira. O ponto de chegada é o problema: assemelha-se ao dos ludditas que 200 anos atrás, na infância da Revolução Industrial, chefiaram na Inglaterra uma rebelião contra as máquinas.



Ludditas: indignação justa, programa errôneo



Seu berço foi Nottingham, aliás também a terra de Robin Hood, mas rapidamente ele se propagou. Seu líder era um legendário líder dos trabalhadores, Ned Ludd, também chamado Rei, General e Capitão Ludd. Entre 1811 e 1813 os ludditas atacavam fábricas, quebravam teares e se refugiavam nos bosques, com forte apoio de massa. Chegaram a enfrentar o exército britânico em batalhas campais.



Os ludditas foram esmagados à força de enforcamentos e deportações, mas, fundamentalmente, por um motivo mais profundo. Sua indignação era justa mas seu programa errôneo. O verdadeiro inimigo a combater não eram as máquinas, nem a grande indústria, mas a propriedade burguesa que fazia e faz delas instrumentos de escravização dos trabalhadores.



Hoje isto é matéria vencida na indústria. Mas o mesmo debate de fundo reaparece na agricultura. Confunde-se o latifúndio enquanto classe social, e sua versão moderna parcial ou totalmente aburguesada, com a grande produção agrícola em si, ao se enfiar as duas coisas dentro de um só termo, o ''agronegócio''.



Agricultura camponesa não é o programa máximo



A conseqüência é demonização da grande produção em si, e até da cana de açúcar em si. E, de outro lado, a apologia da pequena produção camponesa. O ''novo modelo'' que o manifesto propõe é ''alicerçado na agricultura camponesa e na agroecologia, com produção diversificada, priorizando o consumo interno.



A agricultura camponesa – ou familiar, como preferem alguns – é um avanço das forças produtivas, das relações de trabalho e produção, das condições de existência e da emancipação dos trabalhadores, em confronto com o monopólio latifundiário da terra. Por isso a reforma agrária antilatifundiária, com o acesso à terra a todos os que nela queiram viver e trabalhar, permanece como uma grande bandeira democrática e revolucionária de todo o povo brasileiro.



Mas a agricultura camponesa não é o ponto final, o programa máximo da luta dos trabalhadores do campo. Os dirigentes do MST, que a conhecem como poucos, deveriam ser os primeiros a sabê-lo.



A agricultura camponesa produz incessantemente a diferenciação: uma minoria abastada tende a enriquecer com o trabalho alheio; uma maioria tende a vender sua força de trabalho e no limite termina expulsa da terra. É o que ocorre, sob o império do mercado, no mundo inteiro e também nas áreas de economia camponesa do Brasil, inclusive as do Sul, de onde saíram muitos dos dirigentes do MST, justamente por força dessas tensões.



Além disso, a agricultura camponesa impõe limites objetivos ao avanço das forças produtivas, da ciência e da tecnologia na produção agrícolas. O MST também não o desconhece, tanto que direciona os seus assentamentos para que constituam cooperativas de produção, que no entanto removem apenas parcialmente estes limites.
O que leva o canavieiro a morrer de trabalhar?



O MST está coberto de razão ao denunciar as condições de trabalho e de vida dos trabalhadores da cana no Brasil e na América Latina. É repugnante constatar que, em pleno século 21, e nas ricas usinas sucro-alcooleiras de São Paulo, repetem-se os casos de canavieiros que morrem de trabalhar, na acepção literal do termo. Em quase quatro décadas de jornalista, um dos trabalhos que me deixaram uma marca mais funda foi escrever Quem está matando os cortadores de cana?:




''José Mário Alves Gomes, conhecido como Timba, 47 anos, morreu depois de uma jornada em que cortara 410 metros de cana, ou 25 toneladas, na usina Santa Helena, do Grupo Cosan, em Rio das Pedras, a 155 km da capital paulista. Timba foi contratado na base de R$ 0,08 (oito centavos) por metro cortado. Ele iria receber, ao fim do dia, exatos R$ 32,80'', relata a série (clique aqui para ler a primeira e a segunda parte).



Mas o que leva o canavieiro a morrer de trabalhar? Será alguma propriedade maléfica do açúcar? Não. Desde a aurora da sua formação, o Brasil tem sido o grande adoçador do mundo (só suplantado, temporariamente, pelo Haiti no século 18 e por Cuba nos anos 60 e 70 do século 20). E este papel só pode orgulhar os brasileiros, a começar pelos trabalhadores da cana, embora em nada diminua a baixeza de quem os mata de trabalhar.



Será então uma condição inerente às grandes lavouras, às plantações em larga escala? Tampouco. Em muitos casos, a começar justamente pela cana, são elas as mais produtivas, e portanto as que possuiriam melhores condições para remunerar satisfatoriamente os que nelas trabalham.



É justo o dilema ou cana ou alimentos?



Tampouco há uma correspondência necessária entre a cana a monocultura, ou o comprometimento da produção de alimentos. Certamente não no Brasil, que conforme a FAO (organização da ONU para o Fomento da Agricultura) será dentro de 12 anos o maior produtor agrícola do mundo, suplantando os Estados Unidos. Já hoje o país é auto-suficiente quanto à produção de todos os alimentos básicos exceto o trigo. São outros os motivos que impedem essa comida de chegar com fartura à mesa do brasileiro.



O manifesto contra a cana comete uma injustiça flagrante no trecho onde afirma: ''Sabemos que a biomassa não poderá realmente substituir os combustíveis fósseis e que tampouco é renovável''. A afirmação não vem acompanhada de nenhum ensaio de demonstração, e nem seria possível.



É líquido e certo que a era do petróleo se aproxima do seu fim. Os mais otimistas prognosticam que ele chegará na segunda metade do século. A hidrenergia é a outra matriz energética que já está tecnologicamente dominada, limpa, renovável e comparativamente menos agressiva em termos ambientais; seu defeito é estar desigualmente distribuída pelo planeta, mais uma vez favorecendo os brasileiros e demais latino-americanos. As fontes de energia alternativa preenchem uma ampla gama, desde o aproveitamento direto da energia solar até o emprego da força dos ventos, das marés, do calor do magma abaixo da calota terrestre. De todas estas alternativas, uma única viabilizou-se econômica e tecnologicamente desde agora: os biocombustíveis e mais precisamente o etanol.



Quanto à renovabilidade da biomassa, está alcance do censo comum. O manifesto anticanavieiro se refere talvez a um hipotético esgotamento da fertilidade dos solos de lavoura, mas este é um problema bem mais satisfatoriamente equacionado desde hoje, em comparação com o do esgotamento das jazidas petrolíferas, que levaram 800 milhões de anos para se formarem. Na agricultura do século 21, os fatores decisivos são cada vez mais o sol e a água; e estes são justamente os dois diferenciais que mais trabalham a favor do Brasil e de toda a América Latina.



Cana e meio ambiente



Por fim, mas não por último, o documento afirma que ''a destruição do meio ambiente'' é ''inerente'' à indústria da cana. Mais uma vez, afirma sem argumentar. E neste caso chega a reconhecer envergonhadamente o contrário, ao lembrar que o interesse pelo biocombustível aumenta ''aproveitando-se da legítima preocupação da opinião pública internacional com o aquecimento global''.



Como toda e qualquer atividade humana, plantar cana modifica o meio ambiente. A questão reside em escolher as alternativas energéticas ambientalmente mais saudáveis, e desenvolvê-las pelos caminhos menos poluentes. No caso da cana, a solução está ao alcance da mão: a atividade poluente – a queima dos canaviais para despalhá-los e facilitar o corte – já foi abandonada espontaneamente em mais de um terço da superfície plantada, no caso de São Paulo.



A fragilidade desses fundamentos anticanavieiros transparece na parte final do manifesto, em que ele explicita seu ''compromisso''. A lógica do texto imporia uma declaração de guerra à cana-de-açúcar: nada de contemplações com esse maléfico cultivo que traz em sua natureza a superexploração do homem e a destruição ambiental. O ''compromisso'', porém, sai pela tangente. O campesino bom-senso de seus signatários impediu que tirassem essa conclusão.



Para ver mais sobre relações entre trabalhadores e tecnologia, inclusive uma menção aos ludditas ingleses, leia Tecnologia e microeletrônica, uma revolução que desafia os sindicatos



Veja, abaixo, a íntegra do manifesto do MST:




''Tanques cheios as custas de barrigas vazias: a expansão da indústria da cana na América Latina''



''Nós, representantes de entidades e movimentos sociais do Brasil, Bolívia, Costa Rica, Colômbia, Guatemala e República Dominicana, reunidos no seminário sobre a expansão da indústria da cana na América Latina, constatamos que:



O atual modelo de produção de bioenergia é sustentado nos mesmos elementos que sempre causaram a opressão de nossos povos: apropriação de território, de bens naturais, de força de trabalho.



Historicamente a indústria da cana serviu de instrumento para a manutenção do colonialismo em nossos países e a estruturação das classes dominantes que controlam até hoje grandes extensões de terras, o processo industrial e a comercialização. Este setor se baseia no latifúndio, na superexploração do trabalho (inclusive no trabalho escravo) e na apropriação de recursos públicos. O setor se estruturou no monocultivo intensivo e extensivo, provocando a concentração da terra, da renda e do lucro.



A Indústria da cana foi uma das principais atividades agrícolas desenvolvida nas colônias. Permitiu que setores que controlavam a produção e a comercialização conseguissem acumular capital e com isso contribuir para a estruturação do capitalismo na Europa. Na América Latina, a criação e o controle do Estado, desde o século 19, continuaram a serviço dos interesses coloniais. Atualmente, o controle do Estado por este setor é caracterizado pelo chamado “capitalismo burocrático”. A indústria da cana definiu a estruturação política dos Estados nacionais e das economias latino-americanas.



No Brasil, a partir dos anos 70, quando houve a chamada “crise” mundial do petróleo, a indústria da cana passa a produzir combustível, o que justificaria sua manutenção e expansão. O mesmo ocorre a partir de 2004, com o novo Pró-Álcool, que serve principalmente para beneficiar o agronegócio. O governo brasileiro passa a estimular também a produção de biodiesel, principalmente para garantir a sobrevivência e a expansão de grandes extensões de monocultivo da soja. Para legitimar essa política e camuflar seus efeitos destruidores, o governo estimula a produção diversificada de biodiesel por pequenos produtores, com o objetivo de criar o “selo social”. As monoculturas têm se expandido em áreas indígenas e em outros territórios de povos originários.



Em fevereiro de 2007, o governo estadunidense anuncia seu interesse em estabelecer uma parceria com o Brasil para a produção de biocombustíveis, caracterizada como principal “eixo simbólico” na relação entre os dois países. Essa é claramente uma face da estratégia geopolítica dos Estados Unidos para enfraquecer a influência de países como Venezuela e Bolívia na região. Também justifica a expansão de monocultivos da cana, soja e palma africana em todo o território latinoamericano.



Aproveitando-se da legítima preocupação da opinião pública internacional com o aquecimento global, grandes empresas agrícolas, de biotecnologia, petroleiras e automotivas percebem que os biocombustível representam uma fonte importante de acumulação de capital.



A biomassa é apresentada falsamente como nova matriz energética, cujo princípio é a energia renovável. Sabemos que a biomassa não poderá realmente substituir os combustíveis fósseis e que tampouco é renovável.



Algumas características inerentes da indústria da cana são a destruição do meio ambiente e a superexploração do trabalho. Utiliza-se principalmente da mão-de-obra migrante. Portanto, estimula processos de migração, tornado os trabalhadores mais vulneráveis e dificultando ainda mais sua organização. O duro trabalho no corte da cana tem causado a morte de centenas de trabalhadores.



As mulheres trabalhadoras no corte da cana são ainda mais exploradas, pois recebem salários mais baixos ou, em alguns países, como na Costa Rica, não recebem seu salário diretamente. O pagamento é feito ao marido ou companheiro. É comum também a prática do trabalho infantil em toda a América Latina, assim como a exploração de jovens como principal mão-de-obra no estafante corte da cana.



Os trabalhadores não têm nenhum controle sobre a pesagem de sua produção e consequentemente de seu salário, pois são remunerados por quantidade de cana cortada e não por horas trabalhadas. Esta situação tem sérios efeitos para a saúde e causa até mesmo a morte de muitos trabalhadores por fadiga, pelo trabalho excessivo que demanda o corte de até 20 toneladas de cana por dia. A maioria das contratações é terceirizada por intermediários ou “gatos”. Isso dificulta a possibilidade de reivindicação dos direitos trabalhistas, pois não existe um contrato formal de trabalho. A figura do empregador é escondida nesse processo, que nega a própria relação de trabalho.



O Estado brasileiro estimula a utilização de terras dos assentamentos de reforma agrária e de pequenos agricultores, que atualmente são responsáveis por 70% da produção de alimentos, para produzir biocombustíveis, comprometendo a soberania alimentar.



Portanto, assumimos o compromisso de:



Ampliar e fortalecer as lutas dos movimentos sociais na América Latina e no Caribe, por meio de uma articulação entre as organizações dos trabalhadores existentes e as entidades de apoio.



Denunciar e combater o modelo agrícola baseado no monocultivo concentrador de terra e renda, destruidor do meio ambiente, responsável pelo trabalho escravo e a superexploração da mão de obra. A superação do atual modelo agrícola passa pela realização da Reforma Agrária ampla que elimine o latifúndio.



Fortalecer as organizações de trabalhadores rurais, assalariados e camponeses para construir um novo modelo alicerçado na agricultura camponesa e na agroecologia, com produção diversificada, priorizando o consumo interno. É preciso lutar por políticas de subsídios para a produção de alimentos. Nosso principal objetivo é garantir a soberania alimentar, pois a expansão da produção de biocombustíveis agrava a situação de fome no mundo. Não podemos manter os tanques cheios e as barrigas vazias.



São Paulo, 28 de fevereiro de 2007''