De volta a Picasso: 100 anos do quadro que mudou o século 20

“Quando Picasso inventou o século 20”, ensaio publicado nesta terça-feira (06/03), aborda As Senhoritas de Avignon, que o espanhol Pablo Picasso pintou há cem anos. O MoMA, de Nova York, reconstrói agora a criação do quadro. Ao ver As Senhorit

O mais provável é que, há exatamente cem anos, Pablo Picasso, aos 25, se encontrasse nu em um quarto escuro sob seu estúdio parisiense de Bateau Lavoir, lutando freneticamente com um quadro que transformaria para sempre a arte moderna, subvertendo todas as normas de representação espacial e perspectiva, prefigurando o cubismo e deixando perplexos até seus companheiros da vanguarda parisiense.


 


Picasso tinha trabalhado sem descanso no quadro, que intitularia Les Demoiselles d'Avignon (As Senhoritas de Avignon), desde o inverno de 1906. Foi aperfeiçoando a composição sobre uma tela quase quadrada, de 2,4 metros, depois de ter ensaiado em cerca de 700 desenhos preliminares as cinco “putas apocalípticas”, segundo frase da crítica Jackie Wullschlager.


 


Talvez prostitutas de uma casa na Rua Avinyó em Barcelona. Em algum momento de 1907, Picasso — talvez inspirado pelas máscaras africanas que tinha visto no Trocadero em Paris — retocou as duas figuras da direita, arrematando a angústia que o espectador sente diante dos olhares acusadores das mulheres que se expõem entre cortinas com novos traços distorcidos e fragmentados.


 


Terminou o quadro no verão ou outono de 1907. Ao vê-lo, Matisse soltou uma gargalhada e André Derain disse: “Alguma manhã encontraremos Picasso dependurado atrás de sua grande tela”. Cem anos depois, As Senhoritas — pendurado no MoMA de Nova York —, é considerado o precursor de quase tudo o que aconteceu na arte no século 20.


 


Desenhos-chave


 


“É como se Picasso tivesse triturado tudo o que havia antes das Senhoritas”, diz Anna Swinbourne, curadora de uma exposição que o MoMA abrigará de 9 de maio a 27 de agosto para celebrar o centenário da obra. A exposição incluirá alguns dos desenhos-chave para decifrá-la — quadros da coleção do MoMA que Picasso realizou antes e depois das Senhoritas, para tentar localizar o momento da grande ruptura com o passado.


 


Também será explicada a viagem do quadro depois da rejeição inicial até sua primeira exposição em 1916, a compra por Jacques Doucet por mais de 25 mil francos em 1924 e depois a aquisição pelo MoMA, em 1939. Na primeira retrospectiva de Picasso, organizada naquele mesmo ano pelo museu nova-iorquino, era difícil, segundo Swinbourne, acreditar que As Senhoritas tivesse sido pintado em 1907.


 


Mas há outra viagem das Senhoritas — esta de gênese, que se percorre na exposição Barcelona e a Modernidade, que é inaugurada hoje no Museu Metropolitan de Nova York. Segundo concorda a crítica, as sementes da obra de Picasso foram plantadas em Gósol, onde Picasso viveu dois meses no verão de 1906. “No isolamento da montanha, o artista (…) decidiu que tinha chegado o momento para que ele — e não Matisse — fosse o 'mahdi' da arte moderna”, afirma John Richardson, biógrafo de Picasso.


 


Passeio e inspiração


 


Picasso tinha visitado Barcelona com sua amante Fernande em 1906. Chegou no dia seguinte à enorme manifestação do Solidaritat Catalana. Passearam pelo centro antigo perto da Rua Avinyó, onde cinco anos antes Picasso tivera um ateliê junto dos prostíbulos que depois seriam mostrados em As Senhoritas de Avignon.


 


Depois de uma semana o casal iniciou a longa viagem de trem e mula até Gósol. Ali, na pré-modernidade rural, Picasso preparou a ruptura definitiva com o passado. Experimentou composições e poses de nus, sobretudo em dois quadros, ambos na exposição do Metropolitan: Nu Reclinado (Fernande), no qual se vêem inconfundivelmente as duas senhoritas do centro levantadas verticalmente; e o Harém, quatro nus femininos e um homem sentado languidamente com um narguilé.


 


“Foram os precursores de um processo que culminaria com a força destrutiva de um terremoto em As Senhoritas”, diz Jordi Falga, curador da exposição no Metropolitan. Em julho de 1906 um surto de tifo nos Pirineus assustou Picasso, e o casal partiu precipitadamente.


 


Sem voltar a Barcelona, Picasso foi de mula até Puigcerdá, onde pegou o trem para Paris — um regresso relâmpago da antigüidade primitiva de Gósol para a capital da modernidade em gestação, o choque do novo que acabaria plasmado em As Senhoritas de Avignon.