Carlos Lessa: Etanol, geopolítica e nação

Por Carlos Lessa*
A mídia esteve ocupada durante a última semana com o tema do etanol. Considero extremamente correta a posição do governo Lula de exigir a redução do subsídio e, implicitamente, recusar-se a disputar, bilateralmente, uma cota do mercad

Porém, lhe é fácil atribuir às resistências congressuais a manutenção do subsídio e propor ao Brasil o cavalo de Tróia da cota bilateral. Cuba pré-Castro era fornecedora de açúcar; por um acordo bilateral, detinha uma cota do mercado americano de açúcar (Estados Unidos apoiavam com fortes subsídios a produção interna de açúcar de beterraba). Por este padrão, Cuba estava inteiramente subordinada ao mercado americano. Obviamente, a maioria das usinas era de capitais estrangeiros. Fora do açúcar, Cuba tinha a manufatura de charutos e era um parque de diversões para adultos daquele país. 



O Brasil sempre deteve uma excepcional produtividade agrícola canavieira. Nos tempos coloniais, a produção de açúcar somente cresceu no Caribe porque prevaleceu a reserva de mercado. A Inglaterra usava o açúcar da Jamaica; a França, da Ilha de São Domingos, Guadalupe e Martinica; a Espanha produzia seu açúcar em Porto Rico e Cuba. Em busca do açúcar, Estados Unidos declararam guerra à Espanha, anexaram Porto Rico e dominaram Cuba de forma impudica.



O sol é nosso aliado e permite a utilização das instalações agroindustriais quase que o ano inteiro. Do ponto de vista energético, a atividade sucroalcooleira é notável pois utiliza energia autoproduzida (bagaço e, proximamente, a palha). Tem um balanço térmico extremamente adequado para o meio-ambiente nacional e mundial. A produtividade energética do etanol de cana é quatro vezes superior ao etanol de milho e seu custo é muito inferior.



Em resumo, sem subsídios haverá mais milho como alimento e o Brasil dominará, em grande parte, o mercado mundial de bioenergia. Além do mais, historicamente estivemos na ponta agronômica em pesquisa agrícola tropical. 



O BNDES deveria abrir uma
linha especial para financiar usinas
nos países latino-americanos
interessados em ocupar posição
no mercado de bioenergia



Fortalecendo a Embrapa, facilmente manteremos esta posição. Em matéria industrial, temos a Dedine, empresa líder mundial na produção e equipamentos para açúcar, etanol e bioenergia. Não necessitamos de qualquer ajuda norte-americana. Executamos o melhor programa mundial de bioenergia. Colocando o BNDES como banco de desenvolvimento nacional, poderemos robustecer o empresariado nacional do setor e financiar pequena produção cooperada de bioenergia. 



Talvez, como sonho, possamos combinar produção de cana e soja e libertar os equipamentos mecânicos da lavoura do uso de combustível fóssil, substituindo-o por biodiesel derivado da soja associada com a lavoura de cana. Neste programa, o BNDES não deveria financiar empresas agropecuárias estrangeiras e não deveria abrir mão de fortalecer ao máximo a indústria nacional (de nacionais), produtores de equipamentos para a bioenergia. 



É igualmente correta a decisão de constituir um estoque regulador de álcool. A Petrobras terá que investir R$ 4 bilhões para este estoque, que lhe conferirá uma posição empresarial extremamente forte como empresa estratégica de energia. Sua presença é uma salvaguarda para o complexo bioenergético que o Brasil naturalmente desenvolverá. Ao longo do eixo da Ferrovia de Carajás e nas mesopotâmias da Bacia do Rio Madeira, o Brasil poderá construir gigantesco campo de energia renovável para ajudar Europa, Estados Unidos e Ásia na decisiva questão do evanescimento progressivo da economia do petróleo. 



Contudo, o mundo ainda assistirá terríveis conflitos na região petrolífera. Os povos do Oriente Médio estão, de certa forma, amaldiçoados pelo petróleo, pois se convertem em arena dos piores conflitos geopolíticos do planeta.



É extremamente correta a posição de preservar o potencial energético renovável brasileiro – certamente o melhor posicionado. Abrir mão da presença nacional nesta questão estratégica abre uma janela para a subordinação do Brasil integral ao apetite energético pantagruélico dos Estados Unidos e sua total ausência de pudor em estruturar controles desnacionalizantes em seus abastecedores cativos. Dispondo o Brasil de uma energia que, progressivamente, substituirá as fontes fósseis, devemos desde logo não aceitar nenhum Cavalo de Tróia de suposta boa vontade.



Na lenda bíblica, o primogênito abriu mão de sua herança por um prato de lentilhas. Nós não devemos embarcar neste mau negócio; pelo contrário, devemos perceber que haverá um importante mercado no mundo tropical para nossos equipamentos de usinas de etanol e biodiesel.



O BNDES deveria abrir uma linha especial para financiar usinas nos países latino-americanos que estivessem interessados em ocupar posição no mercado mundial de bioenergia. Se algum deles quiser uma relação íntima (bilateral via cota de acesso ao mercado norte-americano), que assuma soberanamente o risco. Nós sinalizaremos com nossa posição uma perspectiva nacional e poderemos, pelo processo de integração sul-americana, evoluir para uma articulação continental. Pode ser um sonho pensar o petróleo, a hidroeletricidade, o gás e a bioenergia do continente funcionando para os povos do continente caminharem para a prosperidade com reforço de suas nações. 



Nada pior para o nosso futuro que caminhar para uma arena de apetites imperiais por energia. 



* Professor-titular de economia brasileira da UFRJ, ex-presidente do PNDES; coluna tomada do jornal Valor Econômico