Amazônia não é para amadores

Por Antonio Levino*


 


Em 2005, por ocasião do relançamento do Projeto Rondon, minha atenção foi despertada por dois fatos diretamente relacionados ao evento: enquanto de Brasília uma liderança estudantil proclamava o sucesso do emp

Na sua saudação, o estudante Luciano Rezende Moreira, que coordenava a operação de retomada do Projeto Rondon, fez questão de sinalizar que: “As três forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica), ao colocarem suas estruturas à disposição dos rondonistas, mostraram um pouco do seu caráter estratégico na região e sua vital presença para os amazônidas, fazendo jus ao lema ‘Braço Forte, Mão Amiga’.” Para finalizar seu discurso, ele ressaltou com veemência que: “professores e estudantes puderam ratificar a disposição do Ministério da Defesa em arrefecer o ímpeto de ONGs internacionais que, a propósito de projetarem uma imagem de guardiãs da Amazônia, atuam sob outros interesses escusos ao país”.


 


Parece-me oportuno abordar o assunto. Primeiro, na condição de ex-rondonista que na década de 1980 participou de diversas operações arriscadas, tanto quanto inócuas, pelo interior do Amazonas. Segundo, na condição de crítico do maniqueísmo simplista, de algumas visões sobre a Amazônia, que vicejam país afora.


 


Tive a oportunidade de cruzar com a tal equipe do Projeto Rondon, em São Gabriel da Cachoeira, onde me encontrava ministrando um curso de especialização em Saúde Pública pela Fiocruz. Foi quando me deparei com o desconforto dos professores e alunos com a má vontade explícita de setores da população local.


 


No meu ponto de vista, há razões de sobra para reagirmos, negativamente, a retomada do Projeto Rondon. Em primeiro lugar porque se trata de uma imposição que desconsidera as instituições que desenvolvem uma ação permanente e ininterrupta na região. A Universidade Federal do Amazonas é uma delas, que por meio de um projeto de interiorização consistente promove atividades de ensino, pesquisa e extensão em todas as calhas de rio do nosso estado, apesar da contingência orçamentária.


 


Em segundo lugar porque, apesar da aliança com as forças armadas ser correta, do ponto de vista estratégico e da macro-política, o mesmo não pode ser dito no plano do cotidiano, uma vez que esta instituição cultiva um forte ranço autoritário e discriminatório contra o povo. Nos hospitais militares, por exemplo, que são regiamente mantidos com recursos do SUS, o acesso dos civis é restritivo enquanto os da caserna têm tratamento privilegiado. Na verdade, de maneira geral, o “braço forte e a mão amiga” do exército, seguem pesados quando se trata de relações públicas, porquê, a não ser naquelas ações ditas cívicas e comunitárias, quando prestam serviços sociais que deveriam ser constantes e de qualidade, persiste um pendor para os maus tratos. Há, inclusive, relatos absurdos da conduta de membros da corporação que negam combustível para o transporte de doentes em situações que exigem socorro imediato. Essas atitudes são justificadas pelas normas burocráticas internas.


 


Por tudo isso, ao chegar numa comunidade, escudado pelo exército, o Projeto Rondon haverá de sentir sempre, toda a carga de preconceito e temor presente na memória da população que confronta diariamente a idiossincrasia dos “milicos”.


 


Para entender a Amazônia, antes de tudo, é preciso apreender a magnitude e a dimensão dos seus problemas, evitando rótulos e chavões tanto à direita como a esquerda. Alguém já escreveu que a Amazônia, com sua grandeza e complexidade não é para amadores e que a defesa do território e a luta contra a internacionalização, não devem ceder a patriotada nacionalista.


 


Sabemos que os povos da Amazônia podem sofrer de abandono tanto no fausto desenvolvimentista, gerado pelo avanço da fronteira econômica brasileira, quanto em função de uma ocupação militar xenofóbica e paranóica. A bem da verdade é justamente a busca de uma alternativa de autodesenvolvimento que leva os povos da floresta a sucumbirem num ambientalismo malsão que, sob o rótulo de sustentável ou de qualquer outro adjetivo, servem ao contrabando da proposta de internacionalização que aliás, por hora, sequer se expressa por meio da defesa de uma usurpação do território senão por uma retórica preservacionista que visa salvaguardar nossas reservas para as relações sociais e econômicas futuras, que ainda não foram pactuadas.


 


Aliás, a geopolítica militar não dá conta de atrair o ribeirinho para a defesa da nossa integridade territorial porquê sua truculência representa apenas a imagem de um Estado nacional ausente que acumulou um passivo a descoberto para com os verdadeiros guardiões de nossas fronteiras: os descendentes da “diáspora” nordestina dos séculos XIX e XX, os quilombolas remanescentes do período pré-republicano, os soldados da borracha e os povos indígenas que estão longe combater a unidade nacional que jamais lhes foi sugerida mas sim imposta a ferro e fogo.


 


Cada um desses segmentos sociais soube sobreviver à ausência do Estado enfrentando as doenças e as condições ambientais inóspitas e fazendo uso oportuno da solidariedade filantrópica e da caridade religiosa, ambas, quase sempre interesseiras. Querer simplesmente acreditar que o abandono preenchido pelas ONGs pode ser substituído pelo espectro de um estado nacional, tão desigual quanto perverso para com restante da nação, não passa de ingenuidade.


 


A Amazônia com seus povos e contradições, não é um vazio que possa ser preenchido por uma caricatura do Estado brasileiro. Ou seja, o que se precisa é ter clareza que um passeio na floresta não é o suficiente para autorizar alguém a emitir juízo acrítico, ainda que eivado de boas intenções. Um país grande e heterogêneo, como o Brasil, não pode ser compreendido na sua diversidade pelo senso comum.


 


Numa simples visita, as contradições que percebemos com um passar de olhos, perscrutador porém frugal, apenas ressaltam o que esperamos e queremos ver. Se essas visões passageiras não podem ser tomadas como incorretas, devem, ao menos, ser admitidas como inevitavelmente superficiais. Sobretudo quando nosso olhar está focado em função de ter sido previamente instruído por uma visão simplista da realidade que seria observada. No caso, uma visão militar sobre a Amazônia é previamente repassada aos rondonistas antes da viagem que fazem ao interior do Amazonas. Se for verdade que só podemos combater as desigualdades com consciência, organização, mobilização e luta, não devemos nos aliar ao preconceito. Por isso, mesmo louvando a iniciativa da UNE e entendendo a necessidade de se apoiar projetos como esses, devemos sugerir aos nobres visitantes do Projeto Rondon, que procurem se apropriar de um olhar crítico sobre a Amazônia para se protegerem do deslumbramento, das mistificações e da ingenuidade.


 


A Amazônia é enorme, rica, cobiçada e, desde sempre, representou um desafio para quem se propôs a compreendê-la: de Márcio Souza e Euclides da Cunha que a estudaram a Thiago de Melo a Júlio Verne que a descreveram; de Carvajal e tantos outros que a percorreram a Che Guevara que também tentou decifrá-la para nós que a vislumbramos com um olhar rebelde. Todos eles, ao fim e ao cabo, se renderam a sua majestosidade vestindo de modéstia as suas considerações sobre o passado, presente e o futuro do maior patrimônio de biodiversidade do planeta. A sabedoria que nos ensina a ter modéstia diante da grandeza, certamente ajudaria um observador eventual a entender que, por aqui, há muito mais a aprender do que a ensinar sobre a arte de sobreviver e o ofício da resistência. Mas nesse caso, como ainda falta aos jovens do Rondon e aos dirigentes da UNE trilhar o caminho da curiosidade que levou os grandes estudiosos a tentar entender a Amazônia, cabe a nós incentivá-los assim como fustigar seu tirocínio.


 


A missão é tão árdua quanto desafiar o Everest e, após escalá-lo, descobrir-se menor ainda diante dele. A propósito, o Pico da Neblina – ponto culminante do Brasil está localizado justamente na Amazônia e perto de São Gabriel da Cachoeira onde me encontrei com a equipe do Projeto Rondon. Pena que sua visitação está suspensa por hora.


 


 


*Antonio Levino
Médico, Pesquisador da Fiocruz, Professor da UFAM e Presidente do PCdoB/AM