Sandra Helena – Roger Waters e eu

Na minha adolescência de ditadura latino-americana, filha de trabalhadores pobres, os acordes do Pink Floyd faziam vibrar cordas que eu nem sabia existirem em mim, e as letras de Roger Waters me faziam ter a urgência de voar, mesmo sem saber pra onde.

Esperar que algo ou alguém lhe mostre o caminho, cansado que está de entediar-se ao pôr-do-sol ou ficar em casa olhando a chuva. Você é jovem, a vida é longa, há tempo a perder, pode matar o dia. Até que um dia você percebe que 10 anos se passaram. Ninguém lhe disse a hora de partir e você sente que perdeu o tiro de largada. O sol é o mesmo, relativamente. Mas você, minha cara, está mais velha, de fôlego mais curto, um dia mais perto da morte. O tempo passou, mesmo que você ainda tenha algo a dizer, a fazer…”.


 


Eu tinha talvez uns 15 anos quando ouvi esses versos pela primeira vez. Tempo. Tudo o que você vê e toca define exatamente o limite de sua vidinha. Vejo agora que Roger Waters tinha perto de 30 anos quando escreveu as letras de Dark Side of the Moon, que completa exatos 34 anos este sábado, 24, dia do show no Morumbi, um dia após minha Apoteose.


 


Na minha adolescência de ditadura latino-americana, filha de trabalhadores pobres, os acordes do Pink Floyd faziam vibrar cordas que eu nem sabia existirem em mim, e as letras de Roger Waters me faziam ter a urgência de voar, mesmo sem saber pra onde. Aos 15 anos não se olha pra trás, nem se diz “Meu deus, 10 anos passaram”. E muito menos se tem dificuldade em reconhecer para onde se quer fugir. Mas Waters falava de uma sensação um tanto atemporal, da desilusão do mundo adulto que alguns jovens de minha geração a sentiram antecipada. Jovens do mundo inteiro, diga-se.


 


O disco foi um dos mais vendidos e é uma das maiores referências do rock mundial. Eram outros tempos, é verdade. Costuma-se chamar esse “Dark Side…” de disco-conceito, algo equivalente ao cinema de autor. O conceito: o freqüente choque entre a dura realidade e nossas visões particulares do mundo, que pode, não raras vezes, arrastar-nos para a insanidade. O fato de as pessoas, no mais das vezes, estarem dispostas, em sua juventude, a não cederem, a levarem uma vida autêntica. E, por fim, capitularem. Ouvir isso era como reconhecer na rua um estranho que eu nunca tinha visto e com ele compartilhar o mais denso de mim.


 


Em recente depoimento, o próprio Waters se impressiona com o fato de ter logrado escrever as letras e participar de todos os arranjos do disco. E é de impressionar mesmo. A força propulsora e criativa de Waters é um estigma para o grupo Pink Floyd, já que Syd Barret sucumbiu a si mesmo. Sua visão de mundo é melancólica, é verdade, mas também afirmativa da necessidade de derrubar os muros do isolamento subjetivista, tão em gosto em nossos tempos, tanto em sentido psíquico quanto social. “Os que realmente te amam, caminham do lado de fora do muro”. Engajamento político e uma poesia pop incomum somada a uma musicalidade refinada (e aí é inegável a dependência do gênio de Gilmour, Mason e Wright) e antecipadora.


 


Ai, quantas vezes cantei “Wish you were here”, pensando justamente em estar em um dos shows da banda. Agora, mais de três décadas depois, me preparo, com a mesma ansiedade daqueles distantes 15 anos, para ver o ídolo de 63, enrugado e de cabelos brancos, com a rebeldia estampada nos olhos. Rebeldia que tenho dificuldade em encontrar em meus jovens alunos de 18 anos.


 


Não apenas 10, já mais de 20 anos se passaram. A sensação de ter perdido a hora me atravessa e sei que também a muitos de minha geração – pelo menos àqueles que não se deixam enganar com seu medíocre sucesso burguês. Mas persiste a urgência de agarrar com força o tempo onde ele está, e tornar-me senhora de meu próprio destino. O que é próprio de quem tem algum lunático vivendo na cabeça.


 


São mesmo tempos sombrios os nossos. Talvez já estejamos todos no lado escuro da lua. Mas não importa. Quando pensamos que cumprimos a tarefa, é hora de recomeçar. Que venham Roger Waters e seus porcos voadores, esfinges pop quase ingênuas. E que vá, Roger, vá, mas não me deixe. Gosto de pensar que há alguém na minha cabeça – e que não sou eu. É sempre reconfortante.


 



Sandra Helena de Souza é Professora de Filosofia e Ética da Unifor