Documentário mostra o moinho musical de Cartola

O documentário Cartola – Música para os olhos, de Lírio Ferreira e Hilton Lacerda, retrata a vida e a obra do sambista carioca Cartola, fundador da escola de samba Mangueira. Negro, pobre, boêmio, Cartola viveu e morreu por sua arte.
Por M

O filme traça com fidelidade a maneira de o compositor encarar a vida na sua peculiaridade de viver e respirar a música. Um dos maiores representantes do samba carioca que nascia no início do século 20 até 1980, quando Cartola morreu de câncer, o compositor viveu e morreu pobre, mas não se importou com isso, pois queria apenas fazer música – aliás, ele respirava e transpirava música, boemia, cachaça, mulheres, samba e a vida.



É isso que o documentário relata com fidelidade. Ao mesmo tempo apresenta um panorama do desenvolvimento da cultura através do cinema, televisão e música, três formas de expressão muito populares em nosso país e quando caminham juntos podem produzir arte abrangente e inteligente como esse documentário. E Cartola, juntamente com João da Bahiana, Pixinguinha, Ismael Silva, Noel Rosa, Nelson Cavaquinho e muitos outros representam o nascimento e desenvolvimento do samba carioca e brasileiro.



O ponto forte do filme, e não poderia ser diferente ao se tratar de Cartola, é mostrar o racismo para com os sambistas. Reprimidos e com pouca chance de gravarem suas próprias canções, a classe sofre com o preconceito em relação à produção cultural do povo, vista como nossa mais autêntica expressão.



Apesar de todo seu valor, Cartola conseguiu sua primeira gravação somente em 1974, aos 65 anos. Esse fato mostra com clareza o descaso do mercado para com a produção cultural popular e o preconceito da sociedade para com os sambistas, de maioria composta por negros. Assim como para com a produção nacional.



Memória e cultura
Outro debate ensejado pela obra refere-se à questão da memória nacional. Se dizem que brasileiro não tem memória, Cartola está aí para desmentir essa afirmativa, assim como Vinicius e tantos outros documentários. Parece que nos últimos anos emergiu uma vontade de entender o país, olhando para o seu interior e para a vida de seu povo. Talvez isso signifique uma novidade e essa novidade pode compreender a alma do povo através de seus artistas e com isso ajude a superar as mazelas e dificuldades do cotidiano. No caso, cinema e música juntos para superar a marginalização do sambista popular e negro e do próprio cinema nacional, que sempre sofreu preconceito.



Além de retratar a vida e obra de Cartola, o documentário mostra a evolução cultural do país por meio dos sambas do compositor para dizer que a memória está nas obras artísticas desse mesmo povo, marginalizado do processo cultural, por uma elite incapaz de entender a esse mesmo povo.



História e arte
A possibilidade de realização deste filme já mostra uma nova atitude perante o entendimento da cultura popular. É o encontro de duas formas de expressão artística cinema e música elaborado de uma maneira viva para dizer que a cultura não se enquadra em denominações e os grandes artistas são imortais em suas obras.



A obra de Ferreira e Lacerda transcende o campo da imagem cinematográfica e capta com rigor a poesia desse grande sambista brasileiro, que fez da música a sua vida e produziu obras-primas do cancioneiro nacional, eternizadas na memória dos brasileiros na voz de diversos cantores e cantoras.



Música para os Olhos diz bem da capacidade melódica e poética de Cartola, mas talvez pudesse ser “música par a alma”. Para a alma do brasileiro, feito por um brasileiro proeminente.