Heloisa Mafalda Melo: O aborto e as manipulações da mídia

O recente plebiscito realizado em Portugal, que levou o país a adotar a legalização do aborto, bem como a declaração do ministro da Saúde brasileiro incentivando o debate do mesmo assunto, trouxeram à ordem do dia a discussão do tema aqui por nossas pa

Aqui, inexoravelmente não podemos deixar de observar o papel da mídia e, em especial, das organizações Globo, por onde todos os assuntos de relevância nacional são submetidos, e o papel deste auto-intitulado quarto poder.


 


Vejamos o dia 10/04: o Jornal da Globo apresentou a primeira de duas reportagens tratando do assunto. Com a sua indefectível “câmera escondida”, contactou uma clínica em Campo Grande (MS) e de forma “imparcial” entrevistou a psicóloga da clínica, bem como a proprietária.


 


De acordo com a parte apresentada (e, obviamente editada) da fala da psicóloga, chega-se à conclusão de que a esmagadora maioria das “freqüentadoras” da clínica (assim são sub-repticiamente tratadas) ou são amantes – cujos parceiros estão por questões morais a obrigá-las à interrupção – ou completas irresponsáveis, que voltam lá, duas, três, quatro vezes seguidas, como quem aplica botox.


 


A proprietária da clínica, no entanto, fez uma defesa explícita das atividades ali realizadas, não tendo ficado claro se ela sabia exatamente se aquilo era uma entrevista televisiva ou não. O fato é que já teve a licença cassada. No final, de forma sorumbática, professoral e quase clériga, o âncora do jornal lembra a todos que aborto é crime no Brasil.


 


Conclusão rasa


 


Na seqüência, uma reportagem sobre uma britânica, que havia congelado embriões de células suas e de seu companheiro, porque iria submeter-se a um tratamento de câncer que ao final lhe impossibilitaria a gravidez por meios naturais. Neste ínterim, a relação com o companheiro acabou, ela curou-se do câncer e, ao tentar implantar os embriões, encontrou a resistência do ex-companheiro.


 


O caso foi parar na justiça inglesa, que deu ganho de causa ao antigo companheiro, determinando a destruição dos embriões, e conseqüente impossibilidade da mulher de ter filhos geneticamente seus, em definitivo.


 


A seqüência capciosa das duas matérias tende a levar o telespectador à conclusão rasa sobre a incoerência no mundo. No primeiro momento, uma clínica destinada à terrível prática criminosa, ceifadora de vidas infantis, praticadas por mulheres de moral questionável e inconseqüente. No momento seguinte, uma mulher que teve seu direito de ser mãe cerceado por uma pretensa frieza do ex-companheiro e a imparcialidade da justiça britânica.


 


Ora, já que é para jogar na confusão: e os embriões que serão destruídos, não são vida também?


 


O problema é este. A discussão passa pela liberdade de escolha num estado laico – e não pelas culpas e desculpas de confessionário que não ajudam em nada as milhares de mulheres que anualmente morrem ou sofrem seqüelas permanentes pela prática do aborto clandestino em condições absurdas.


 


Arrependimento?


 


No decorrer do período, tivemos ainda a reportagem da revista Época, com uma reportagem um pouco menos tendenciosa, mas apresentando uma ilustração de capa um tanto questionável – um bebê visivelmente desenvolvido ainda no útero.


 


A revista também mostrou depoimentos de mulheres famosas arrependidas de terem feito o aborto no passado e atualmente contra a prática (quanta hipocrisia!). Apenas na internet, encontrávamos o depoimento de Vera Zimmerman em contrário.


 


A Rede Globo, mais uma vez atendendo a interesses obscuros e obscurantistas, começa agora a querer dar o tom do debate. É importante que fiquemos atentos a mais essa distorção de temas relevantes para o povo brasileiro, que ora é considerado pela referida emissora genial (eleição de FHC), ora uma massa de ignorantes por ter levado o atual presidente duas vezes ao comando do país.


 


* Heloisa Mafalda Melo é advogada