Cinema no Brasil: concentração, preconceitos e crise

Conheça as maiores distribuidoras de filmes no Brasil, sua concentração apenas em mercados rentáveis, seus modelos de negócios e seus lucros. Conseqüente bloqueio ao acesso democrático à produção cinematográfica, principalmente à nacional, é o problema

Dada a força da propaganda dos grandes lançamentos e a importância relativa que o setor cinematográfico recebe com leis próprias de incentivo, linhas de fomento e apoio de bancos públicos, seria de se esperar que o Brasil tivesse uma estrutura bem desenvolvida, em quantidade e distribuição, de salas de cinema, responsável por impulsionar toda a cadeia de produção audiovisual nacional. Mas não é bem o que ocorre.


 


No país, eram 2095 salas de cinema até o final de 2006, de acordo com dados da Ancine, para aproximadamente 180 milhões de brasileiros. Começamos a ter idéia do que este número significa quando, a partir da base do IBGE, descobrimos que menos de 10% dos municípios do país têm salas, e que nos Estados Unidos, maior mercado, são algo em torno de 37 mil locais de exibição.


 


A distribuição também não ajuda: 1016 salas, quase 48% do total, estão somente nos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo. Outros 38% estão espalhados entre Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Goiás, Distrito Federal e os estados da região Sul. Sobram, para os outros 17 estados do país, 298 salas.


 


Alguns, como o Amapá, contam com menos de dez salas, geralmente localizadas na capital e com estrutura muito aquém da dos multiplex ou das salas com som e imagem digitais do Sudeste. Vão para as telas, porém, os mesmos filmes. E os filmes nacionais costumam não passar muito do mínimo exigido pela cota de tela.


 


A concentração de locais de exibição reflete-se também na distribuição das empresas que detém as salas, com raras exceções. Das onze maiores empresas, responsáveis por 1100 salas, quatro tem sede em São Paulo, três no Rio e uma em Minas Gerais. Aqui começam as exceções, com a Arco-íris, de Santa Catarina, quinta maior do país, e a AFA (ES) e a Cinesystem (PR), empatadas em décimo lugar, com 35 salas.


 


Entre as empresas ainda, a maioria avassaladora está localizada nas regiões Sudeste, detendo 1233 salas, e Sul, com 183 salas. As demais salas ou estão ligadas a “independentes”, como salas alternativas e empresas pequenas, diversas ainda no Sudeste e Sul, ou às empresas Majestic (GO), com sete salas, Orient (BA), com 19 salas, ou a já citada AFA (ES).


 


Quem são as grandes distribuidoras


 


Não bastasse a concentração geográfica de salas e empresas, há ainda algumas poucas “gigantes” do ramo no país. 694 salas estavam nas mãos de apenas quatro empresas, respectivamente Cinemark, com sede em SP e 321 salas, Grupo Severiano Ribeiro (GSR), com sede no RJ e 164 salas, Grupo UCI, também do RJ e com 111 salas, e grupo Moviecom, com sede em SP e 98 salas.


 


Nesse pequeno grupo, alguns fatos chamam a atenção: UCI e Cinemark são empresas internacionais, a menos de 15 anos no mercado local; GSR e Moviecom tiveram origem em metrópoles regionais, respectivamente Fortaleza e Botucatu. Todas exibem predominantemente filmes dos grandes estúdios estadunidenses, investem na digitalização das salas e em parcerias e outras formas de arrecadar mais capital, até para completar o processo de digitalização.


 


O Cinemark, que no mundo tem um total de 4506 salas, na maioria no formato multiplex (complexos de salas, geralmente em shopping centers), atua no país desde 1997, especialmente nas regiões Sul e Sudeste e no Distrito Federal, com um total de 38 complexos, a maior parte na região metropolitana de São Paulo. Tal hegemonia se reflete nos lucros: a empresa divulga ter obtido, em 2006, renda bruta de R$ 330 milhões.


 


O setor faturou, no ano passado, R$ 694,9 milhões, segundo estimativas do Filme B, entidade privada que recolhe dados e gera estatísticas e estudos do setor, independente da Ancine. Para captar recursos, o grupo procura, neste ano, lançar ações no mercado, e a assessoria de imprensa do Cinemark alegou que, por este motivo, não poderia ceder mais detalhes sobre os planos de expansão.


 


Maior grupo de capital nacional, o Severiano Ribeiro começou em 1917, em Fortaleza, praça que logo dominou, expandindo seus negócios para Recife. Com a chegada das distribuidoras americanas no país, na década de 1920, o grupo migrou para o Rio de Janeiro, onde se expandiu e começou uma série de parcerias.


 


As primeiras foram com as americanas Metro e Fox Films, nas décadas de 20 e 50, respectivamente, e depois com a Paris Filmes (1987), com o Grupo Estação, com quem administra cinemas em prédios históricos ou os chamados cinemas de rua, fora de shoppings, no Rio de Janeiro. Em 1997, firmou parceria com a americana UCI, com a qual administrava, até 2006, 30 salas. Investindo em sua versão das multiplex, com o selo Kinoplex, o GSR tem utilizado salas com tecnologia digital, uma delas no padrão DCI, recém-inaugurada em parceria com a UCI.


 


A exemplo do GSR e do Kinoplex, os executivos da UCI não atenderam nossa reportagem. De capital estadunidense, a empresa opera principalmente através da parceria com o GSR, recentemente mobilizando recursos para viabilizar o empreendimento no Rio de Janeiro, onde, somente no Norte Shopping, terão 2.436 lugares. A empresa detém ainda investimentos em outras capitais, como São Paulo, onde tem pouco mais de 20 salas em dois complexos.


 


A quarta exibidora, a Moviecom, teve um começo um tanto familiar, em Botucatu, fato que seu supervisor, Gustavo Ballarin, coloca com um certo orgulho: até o começo dos anos 90, ainda com o nome de Cinematográfica Passos, a empresa foi reestruturada, só então mudando sua estrutura empresarial. Com a mudança, começaram os investimentos em praças mais rentáveis, como São Paulo, mas sem abandonar o foco do grupo: o interior paulista e algumas capitais do Norte e Nordeste, como o complexo que inaugurará em Belém neste ano.


 


De Ballarin, vem uma constatação: é difícil competir com os estrangeiros: “o setor enfrenta uma grande crise desde 2004. Vem daí uma retração no mercado dos pequenos grupos e uma concentração das salas para os grandes estrangeiros, capazes de investir”. Por esta e outras causas, a empresa estuda abrir participação em leis de incentivo fiscal para 2008. Atualmente o grupo investe apenas recursos próprios.


 


Crise, aculturação e lucros


 


É fato que a “crise” atinge hoje o setor de forma desigual. De acordo com César Silva, diretor geral da distribuidora Paramount Brasil, entre 1997 e 2004, o mercado nacional cresceu seguidamente, e o número de salas mais que dobrou, resultado também dos investimentos dos estúdios estadunidenses, seguindo os lucros crescentes de seus filmes no período.


 


Em 2005 e 2006, ocorreu algo que para Silva é uma “acomodação”, apesar do crescimento de 3,2% do faturamento do setor. Salas foram abertas, mas em ritmo bem menor. Para o primeiro semestre de 2007, porém, há previsão de construção de tantas salas quanto no ano de 2006, especialmente com capital internacional, no que talvez seja um último impulso antes dos investimentos na digitalização dos projetores.


 


Para o professor e pesquisador André Piero Gatti, autor do livro A Distribuição e a Exibição na Indústria Cinematográfica Brasileira (1993-2003), de fato o momento é de uma crise cuja real duração é desconhecida, mas é natural que haja certa retração depois do investimento feito no setor (entre 1997 e 2004), pois o público não chegou aos patamares esperados pelos planejadores do mercado.


 


“Mas a inserção (de empresas estrangeiras) no mercado nacional provocou um novo rearranjo do regime de desenvolvimento econômico do setor. Esta nova realidade reagrupou interesses e modificou hábitos anteriormente arraigados. Isso se deu tanto na recepção dos filmes quanto nos aspectos de comercialização e organização da própria indústria de produção de filmes”, pontua o acadêmico.


 


E aqui a “bagunça” na legislação ajuda os investimentos, em especial dos produtores de filmes americanos, em distribuição e exibição. Sobre o caso brasileiro, trata-se de um verdadeiro campo descampado para a inserção indiscriminada dos produtos da indústria hegemônica do cinema contemporâneo.


 


Sobre o fato de haver uma política casada entre estes interesses, ela me parece óbvia, mas não é alardeada para não provocar ações das mais variadas contra estas empresas. Isto porque a lei antitrust nos Estados Unidos não permite tal casamento e outros atos legais impedem que isto também seja feito no exterior”, afirma Gatti.


 


Este monopólio, pelos motivos já colocados, não está claro nos contratos, mas nas práticas comerciais. “Homem-Aranha I entrou em mais de 500 salas no Brasil, ocupando quase 1/3 do total do circuito de exibição. Isto não aconteceria nos Estados Unidos, por exemplo. O cinema no Brasil historicamente sempre funcionou como moeda de troca nos acordos comerciais que o país mantinha com os Estados Unidos”, completa Gatti.


 


Para a pesquisadora e doutoranda do Prolam/USP, Ignez Gurgel, essa ampliação do parque exibidor, contínua desde 1997, exerce um impacto cultural importante, ao mesmo tempo em que representa um acesso maior às linguagens audiovisuais.


 


Para a pesquisadora, “os impactos advêm da absorção de outra(s) cultura(s), de ser educado por imagens visuais e verbais que narram histórias e que nos educam dentro de um processo de educação da memória e do olhar pela realidade em movimento, que é o cinema”.


 


E completa: “o entendimento de um filme se dá através da história do filme e a história do espectador. É nesse intervalo, nesse vazio, que é construído o significado do filme. A educação visual é construída em forma, técnica e ideologia, num processo de aculturação”.


 


Fonte: Carta Maior, com Cultura e Mercado