Semi-árido nordestino pode virar deserto com aquecimento global

Por André Barrocal, na Carta Maior*
Região mais pobre sofrerá piores conseqüências do aquecimento global. Água deve sumir e solo virar deserto ainda neste século. Situação, considerada sombria pelo governo, exige novas políticas e mais dinheir

Quando se fala em pobreza, fome, indicadores sociais deploráveis e ausência de perspectiva de vida, a maioria dos 32 milhões de habitantes do Nordeste não tem do que reclamar. Há para todos, com sobras. Mas, como tudo sempre pode piorar, diria um pessimista, os descendentes da atual geração talvez um dia invejem os avós.
Ainda neste século, o Nordeste pode assistir ao encolhimento de suas áreas em condições de produzir alimentos, à redução da produtividade do solo sobrevivente e ao sumiço total de água. Num cenário assim, a miséria se multiplicaria, forçando a população a migrar para grandes cidades, inchando-as – e agravando problemas que elas já possuem.



Estas são as prováveis conseqüências do aquecimento global sobre o Nordeste, de acordo com estudos do Ministério do Meio Ambiente e de especialistas no assunto. Um quadro “sombrio”, segundo o ministério, que não deve se repetir em nenhuma outra região do país. “Como sempre, são as populações mais pobres, mais vulneráveis, que serão atingidas”, disse a ministra Marina Silva.



Com as mudanças climáticas, a temperatura no semi-árido nordestino deve subir de 4ºC a 6ºC nos próximos 60 anos. A água vai desaparecer, embora haja dúvidas sobre o momento. O pesquisador Eneas Salati, da Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável, diz que, pelos cálculos com as fórmulas brasileira e americana, a seca começa em 2071. A equação inglesa antecipa a tragédia para 2025. “No longo prazo, todos os modelos e cenários mostram uma situação bastante difícil”, afirmou Salati.



Desertificação e prejuízos



O aumento de temperatura e a falta de água vão acelerar um processo conhecido como desertificação que já afeta o Nordeste, especialmente o semi-árido. Como o nome sugere, é a transformação de uma área em deserto. Já atinge o Nordeste graças a mudanças climáticas passadas resultantes de extrativismo e agricultura descontrolados, desmatamentos e queimadas. Agora, tende a se agravar.



O processo causa todos os anos um prejuízo econômico ao Nordeste estimado em R$ 300 milhões. Algo como meio milhão de benefícios do Bolsa Família. Para estancar a reverter a desertificação, precisariam ser investidos, até 2020, R$ 2 bilhões por ano, o equivalente a 2% de tudo o que o país pagará de juros da dívida em 2007.



Como nada indica que governo e Congresso vão providenciar tal cifra, o ministério do Meio Ambiente continuará enfrentando o problema com uma quantia que, diante da necessidade, parece até inútil: R$ 12 milhões. Este é o orçamento deste ano do Programa de Combate à Desertificação.



Coordenador do programa, José Roberto Lima diz que, com a pouca verba, mal dá para tocá-lo. Ele pede mais recorrendo a um argumento poderoso. “Combater a desertificação no árido e no semi-árido, é combater a pobreza, porque é a região com mais pobres”, disse.



Políticas públicas



As implicações do aquecimento global sobre o Nordeste deixaram assustados deputados federais da Comissão de Meio Ambiente da Câmara, que na última quinta-feira (3) realizou uma audiência pública sobre o tema. Aliados e adversários do governo concordam que a situação é tão crítica, que exige ações imediatas.



“Mais do que preocupante, é um quadro arrasador. Não adianta ficar só discutindo. O Brasil precisa fazer uma mudança de política pública”, afirmou Luiz Carreira (ex-PFL-BA). “Se existe essa constatação, temos de criar políticas que minimizem o problema”, disse Iran Barbosa (PT-SE).



Para Antonio Rocha Magalhães, um dos editores do relatório da ONU sobre mudanças climáticas, a salvação do Nordeste passa pelo desenvolvimento sustentável. Ele recomenda, por exemplo, incentivar a adoção de tecnologias mais modernas na agricultura. Sobretudo para evitar danos à pequena produção de subsistência. “O Brasil tem grande capacidade adaptativa, por causa do histórico de cem anos de seca”, afirmou Magalhães.



Eneas Saladi sugere soluções simples, como construir cisternas coletivas (reservatórios para água da chuva) e redes de tratamento de esgoto cuja água fosse usada só em indústrias. Para José Roberto Lima, o avanço da educação no semi-árido, a fim conscientizar a população local sobre os perigos que corre, ajudaria a minimizar o problema. E uma “urgente” revitalização do Rio São Francisco, também.