O papa e o Brasil: De costas para o futuro

Por Paula Pacheco. na Carta Capital*
Quando desembarcar no Brasil, na quarta-feira 9, para uma estada de quatro dias, o papa Bento XVI terá a oportunidade de constatar de perto os resultados de seu trabalho nas últimas décadas. Coube ao então

No período, o catolicismo afastou-se de temas da realidade dos fiéis ou se contrapôs a posições aceitas ou não mais tão reprimidas pela sociedade, a exemplo da cada vez mais radical posição do Vaticano sobre o uso da camisinha, o aborto e a união civil entre homossexuais. Combateram-se os padres preocupados com a realidade cotidiana e sempre dispostos a misturar fé e religião. Em troca, estimulou-se um novo exército de evangelizadores, interessados apenas na dimensão mística da vocação e adeptos de pregações que incluem louvores em voz alta, rituais contra possessões demoníacas e glossolalia (fala em várias línguas incompreensíveis durante o transe, como nos relatos antigos de profetas tomados pelo Espírito Santo).



“Maior nação católica”, menos católica



A guinada, dizem os defensores da estratégia, era necessária para reavivar a força do papel evangelizador da Igreja Católica, moldado, nos primórdios, por Pedro e Paulo. Também para impedir o esfacelamento da religião ante as transformações avassaladoras do mundo e o avanço dos cultos pentecostais sobre a base de fiéis.



Não é o caso de julgar se a Igreja ficou melhor ou pior, se serve agora a ideais menos nobres ou não. Em termos práticos, levando-se em conta os objetivos do Vaticano, o que a realidade mostrará a Bento XVI é que são questionáveis os resultados da moderna “contra-reforma” que ele mesmo gerenciou ao longo de quase três décadas. Especialmente no Brasil, ainda tratado como “a maior nação católica do mundo”. O país que o alemão Ratzinger encontrará agora é bem diferente do visitado pela primeira vez pelo polonês Karol Wojtyla em 1980. Os brasileiros são menos católicos e aumentaram as divergências da população com a cúpula da Igreja em relação a temas controversos, como o aborto.



Segundo a pesquisa Vox Populli, encomendada por Carta Capital e TV Bandeirantes, 86% dos entrevistados defendemo uso da camisinha. Quanto ao aborto, a maioria (51%) não o condena, ao contrário das últimas manifestações do papa sobre o assunto.



No levantamento, 65% se declararam católicos e 22% evangélicos. Outros 10% disseram não seguir nenhuma religião. O resultado confirma a tendência de perda de fiéis captada por medições do IBGE. Segundo a última verificação oficial do instituto, em 2000, 73% dos brasileiros se diuziam católicos. Em 1980, eram 89%.



Teologia da Libertação continua combatida



A Igreja também perdeu a força de recrutar novos padres. No início da década de 80, havia 13.888 seminaristas. No ano passado, esse número caiu praticamente pela metade, 7.889. O ex-padre Leonardo Boff, um dos mentores da Teologia da Libertação, que deixou o sacerdócio, em 1992, após ser punido pelo Vaticano, critica: “A Igreja não soube se renovar institucionalmente, nem na linguagem nem nas celebrações. Deveríamos ter cerca de 120 mil padres e temos somente uns 16 mil. A fossilização institucional que perdura há séculos, agravada com a imposição da lei do celibato, tem impedido que se reproduza internamente.”



Em 1980, João Paulo II visitou um país sacudido pela efervescência sindical. Hoje, para atrair público às comemorações do 1º de Maio, as centrais de trabalhadores precisam contratar artistas e fazer sorteios.



O catolicismo também é outro. A turma da Teologia da Libertação e as comunidades ecleseais de base tinham um papel de destaque. De lá para cá, perderam espaço, inclusive entre os católicos, que ajudaram a colocar fermento na Renovação Carismática – um movimento com características conservadoras, surgido após o Concílio Vaticano II (1962-1965), cuja proposta foi a revisão de métodos da Igreja para aproximá-la do povo. O movimento abrigou muitos dos chamados padres cantores, como Antonio Maria e Marcelo Rossi, que conseguem reunir, em média, 20 mil seguidores a cada “showmissa”.



O combate aos teólogos da libertação continua sob o papado de Bento XVI. Em março último, o Vaticano anunciou a punição do jesuíta espanhol Jon Sobrino (que vive em El Salvador). Ele está proibido de dar aulas em escolas católicas e de escrever livros até que revise conceitos como a possível “humanização” de Jesus. O processo contra Sobrino começou em 2001, quando Ratzinger ainda estava no comando da Congregação para a Doutrina da Fé.



Boff descreve Ratzinger: “Linha retiínea”



O brasileiro Boff faz questão de distinguir o comportamento pessoal e o religioso de Bento XVI. Como pessoa e como intelectual, diz, é de finesse notável, sem perder o equilíbrio interior. “Mas possui a estatura de um professor acadêmico alemão, extremamente rigoroso nos conceitos e pouco flexível em face de realidades de fora da academia”.



Boff acredita que Ratzinger não se sinta à vontade na nova função, principalmente nos rituais próximos ao populismo, como “abraçar crianças, erguer os braços e ter de sorrir continuamente”. Normalmente, quanso uma pessoa avança em idade e galga os últimos postos do poder, analisa o teólogo, torna-se mais flexível e tolerante. “Ele continua numa linha retilínea e conseqüente, até censurando teólogos. Fé sem liberdade não existe. É o ato mais generoso que alguém pode fazer, entregar sua vida e destino a um Maior”, explica.



Para estudiosos, a freada na expansão católica é conseqüência de erros cometidos pela Igreja e de sua estrutura excessivamente burocrática. A socióloga Sílvia Fernandes, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, responsável pelo mapeamento mais recente das rotas do trânsito religioso, feito pelo Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais (Ceris) em 2004, acredita que o afastamento dos fiéis, entre outros motivos, tenha ocorrido por discordância dos princípios doutrinários. Além disso, lembra, quando o vínculo é frouxo, pode-se ser atraído por qualquer outra oferta. “O catolicismo ainda está muito concentrado em paróquias e pouco voltado às comunidades. Enquanto isso, os evangélicos atual de forma individualizada, na base do olho no olho”, afirma.



Em debate os motivos do recuo



A estagnação católica e a adeqüação das outras religiões aos novos tempos também são explicações encontradas por dom Mauro Morelli, ex-bispo da diocese de Duque de Caxias (RJ), para o encolhimento. Segundo ele, o projeto vigente de formação pastoral e ministerial não permite que a Igreja crie e cuide de comunidades ecleseais, indispensáveis à evangelização. “A concentração dos serviços religiosos e os eventos de massa definitivamente não atingem esses objetivos. Outras igrejas e religiões sabem disso. Caminham ao encontro do povo, batendo nas portas das casas, promovendo reuniões nas praças e estabelecendo pontos de pregação”, avalia dom Mauro, que se aposentou.



O teólogo José Oscar Beozzo, coordenador-geral do Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular (Cesep), em São Paulo, e vigário da Paróquia São Benedito, em Lins (SP), fala de problemas externos à estrutura da religião. “Os setores populares perderam a esperança, as famílias se desfizeram com a mudança para as cidades e muitos se sentiram no fundo do poço, de uma forma que nem a igreja nem um bilhete da loteria dariam jeito”, afirma. Antes, lembra, com mais pessoas no campo, as próprias comunidades, mesmo com raras visitas de um padre, se organizavam para manter a capela ou comemorar o dia do santo da localidade. Na transição para o meio urbano, isso se perdeu.



Segundo o levantamento do Ceris, o país tem 67,2% de católicos, 13,9% de evangélicos pentecostais (com a Assembléia de Deus, Igreja Universal do Reino de Deus e Evangelho Quadrangular) e 4,1% de evangélicos históricos (por exemplo, Adventista do 7º Dia, Luterana e Batista). Entre os católicos que muidaram de religião nos últimos anos, o principal destino (58,9%) foi alguma das igrejas evangélicas pentecostais.



Em outra pesquisa, divulgada na quarta-feira 2 pela Fundação Getúlio Vargas a partir de dados do IBGE, as informações são diferentes. Segundo o coordenador do estudo, Marcelo Néri, a queda de mais de 20 pontos porcentuais no número de católicos de 1940 a 2000 foi interrompida, ainda que o período pesquisado seja curto demais para apontar qualquer tendência. De 2000 para 2003, mostra o levantamento, a população declaradamente católica passou de 73,89% para 73,79%.



Nem o novo santo empolga



O descontentamento generalizado com a religião, misturado à falta de carisma do novo papa (a pesquisa Vox Populi aponta que 45% não lembravam o nome do santo padre e 7% simplesmente erraram na resposta), revela-se em alguns fatos. Agora, em vez de se discutirem quais propostas podem surgir a partir da visita, o que mais se ouve são amenidades, tais como os quitutes e o vinho que serão servidos, os lençóis e a reforma do quarto, o projeto do altar que parece levitar. “Só falta a marca do papel higiênico”, ironiza um teólogo. A visita vai custar R$ 3,2 milhões, divididos entre a prefeitura e o governo do estado de São Paulo.



A dúvida é saber se Bento XVI, com seu estilo intelectual e visão eurocêntrica do mundo, será capaz de recuperar a popularidade do catolicismo. No Brasil, nem a nomeação do primeiro santo nascido no país empolga tanto os adeptos. A missa para a beatificação de Frei Galvão no Campo de Marte, em São Paulo, segundo estimativa da Igreja, deve contar com 1,5 milhão de participantes. Uma das explicações para esse público seria o fato de a missa ter sido marcada para a sexta-feira, quando muita gente trabalha. Quando João Paulo II desembarcou pela primeira vez no país, um ano depois de assumir o papado, arrastou pela Esplanada dos Ministérios, em Brasília, 2,5 milhões de seguidores.



Reações: Renovação Carismática



E parece não haver padre cantor ou canal de tevê (a Igreja controla nove redes de TV e 215 emissoras de rádio no país) capaz de deter ou reverter o esvaziamento das missas. Nem a midiática Renovação Carismática tem sido eficiente.



Marcos Volcan, presidente da Renovação Carismática Católica do Brasil, conta que o movimento surgiu como uma resposta às mudanças de um país em processo de urbanização. “A transição da vida rural para a urbana encontrou a Igreja despreparada. O movimento carismático respondeu às novas demandas da sociedade”, diz o líder. As missas do padre Marcelo Rossi, no Santuário do Terço Bizantino (na zonma sul de São Paulo) são exemplo da lógica carismática de que os fins justificam os meios quando se trata de propagar a fé. Os métodos para prender a atenção dos participantes são pouco convencionais. “Jesus ressuscitou”, grita o padre. Diante da reação tímida, ele provoca: “Tem corintiano aqui?” A platéia reage aos brados. Da mesma forma, são-paulinos, palmeirenses e santistas são convocados para a torcida. “Quando o seu time faz gol, você não grita? O que é mais importante na vida, futebol ou Jesus?” Cristo vence a disputa com folga. O padre, é claro, não esconde a satisfação: “Aleluia!” depois da missa, ainda tem para os jovens a Cristoteca, uma festa embalada pelo bate-estaca das músicas.



Assim como o colega, padre Antonio Maria leva a evangelização por meio da música a sério. Lançou 17 CDs e tem uma agenda cheia de shows pelo país. “Passamos séculos rezando a missa em uma língua que ninguém entendia, de costas para o público. Estava mais do que na hora de renovar os métodos”, diz o vigário. Não é o que pensa Ratzinger, que recentemente defendeu a volta das missas em latim.
Dom Geraldo Majela Agnello, acrebispo de Salvador, que acaba de deixar a presidência da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), é favorável à tradição. “É importante que, apesar de se rezar a missa em português, haja fidelidade à origem. Isso pode acontecer, por exemplo, ao cantar o Glória, algo que o povo tenha na memória”, afirma o bispo.



O arcebispo, substituído na CNBB por dom Geraldo Lyrio (da Diocese de Mariana), faz parte do grupo dominante que não aceita a hipótese de a própria Igreja ter uma parcela de responsabilidade na fuga de católicos. “O mundo mudou, mas não temos de mudar. O conteúdo da Igreja vale para hoje e para os séculos. As pessoas é que estão mais individualistas e devem rever essa forma de viver”, diz. Isso inclui a proibição ao aborto, o uso de preservativo, o casamento entre pessoas do mesmo sexo e as pequisas com células-tronco.



Se Ratzinger usará a visita para reforçar a ortodoxia, os representantes de organizações não-governamentais deverão aproveitar a visibilidade para protestar. Para a coordenadora do Grupo Curumim, Paula Viana, “esses temas não dizem respeito à Igreja, mas ao Estado brasileiro”.



Dom Geraldo não critica apenas temas como o fim do celibato para os religiosos e a legalização do aborto. Sobre a Renovação Carismática, ele diz: “Se alguém resume toda a fé somente àquele modo de manifestação, por meio de gestos e cantos, e na vida continua sendo mentiroso, injusto, não vale nada ir à igreja. O que vale não é o oba-oba, mas buscar as razões para o que vem acontecendo no mundo, como a violência, e a necessidade do perdão.”



Reações: Opus Dei



Ainda mais conservador que a Renovação Carismática, o Opus Dei (uma diocese da Igreja Católica que pode atuar sem limites geográficos) também aumentou a influência política, apesar do pequeno número de adeptos. São cerca de 84 mil no mundo, 1.700 no Brasil.



Influente e extremamente fechado, o grupo tem entre seus integrantes no Brasil Carlos Alberto Di Franco, diretor do Master de Jornalismo da Universidade de Navarra (Espanha) e colunista de O Estado de S. Paulo, e o jurista Ives Grandra Martins. O ex-governador de São Paulo Geraldo Alckmin admitiu simpatia pelo Opus Dei. Márcio Fernandes da Silva, um dos autores do livro Opus Dei – Os Bastidores, fez parte do grupo desde criança. E dia: “A eles interessa formar membros nas camadas dirigentes da sociedade. Por trás do discurso sobre a santificação no dia-a-dia, há um complexo projeto que ambiciona a tomada de postos de comando, como a mídia, o governo e grandes universidade.”



As comunidades de base



No outro extremo de instituições como o Opus Dei estão pastorais como a da Terra e as comunidades ecleseais de base, cada vez menos prestigiadas pelo Vaticano. Em 1995, quando teve a oportunidade de encontrar João Paulo II por dez minutos, o presidente da Comissão Pastoral da Terra, dom Xavier Gilles de Maupeou d'Ableiges, bispo de Viana (MA), abriu o jogo: “Falei da necessidade de uma Igreja mais descentralizada, voltada para a comunidade, mais corajosa. O papa fugiu do assunto. Perguntou das vocações, da família brasileira, não respondeu nada.”
Apesar do aparente respaldo da CNBB, dom Xavier não poupa críticas ao alto clero. “É muito mais fácil obter recursos para realizar três dias de louvores a Cristo do que para fazer uma romaria pela terra. Uma parte da Igreja torce o nariz para o nosso trabalho. Muitos idolatram Jesus no Céu e deixam de reconhecê-lo no oprimido.”



Estimativas do Instituto de Estudos da Religião, do Rio de Janeiro, indicam a existência de cerca de 70 mil comunidades ecleseais de base em funcionamento no Brasil, aproximadamente o mesmo número que havia no início da década de 80. O sociólogo Pedro Ribeiro de Oliveira, consultor da entidade, diz que houve redução do número de mebros ativos e perda de visibilidade na imprensa. “Aos poucos, João Paulo II retirou o apoio às iniciativas de mobilização popular. Até pela formação anticomunista que teve na Polônia, o papa temia uma revolução na Igreja.”



Ainda que a visita de Bento XVI sirva para jogar luz sobre alguns temas, acredita o padre José Oscar Beozzo, não terá um grande impacto. “Mas tenho certeza de uma coisa. O papa deixará o país transformado, assim como aconteceu com João Paulo II. Não é como visitar a Turquia, com seus 18 mil católicos. Ele será recebido em um país com cerca de 130 milhões de católicos.



* Fonte: Carta Capital; colaboraram Eliane Scardovelli e Rodrigo Martins; intertítulos do Vermelho



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