Crise expõe fragilidades do “paraíso neoliberal” chileno

O modelo econômico chileno, apontado por muitos como exemplo para o continente, está fazendo água. Somente em 2006, houve uma saída recorde de capitais: 25 bilhões de dólares, 17% do PIB chileno.
Por Raúl Zibechi, do La Jornada

Um novo e profundo mal-estar é observado em Santiago. Nas paradas de ônibus e no metrô, em bairros populares como La Victoria – trincheira da resistência à ditadura –, nos corredores de hospitais públicos e nas portas dos colégios se expressa, à viva voz, uma nova consciência sobre os problemas do Chile, e em relação aos responsáveis pelo “modelo” – do qual ainda se ufanam os políticos de direita e de esquerda – que está dando claros sinais de esgotamento.



Em 15 meses, o governo de Michelle Bachelet acumulou problemas e se obrigou a lutar em várias frentes. Primeiro foi o massivo e maciço protesto dos estudantes secundaristas contra uma lei de educação herdada do ditador. A mobilização jogou sobre a mesa o problema do lucro no ensino, que boa parte do oficialismo resiste a questionar. Quando os ecos das assembléias estudantis ainda eram ouvidos, chamadas a se converter em divisor de águas de uma cultura política que gira em torno da representação, a colocação em marcha do Transantiago (sistema de transporte coletivo privado) provocou uma crise política que pode arruinar a Concertação Democrática, a aliança democrata-cristã e socialista que administra o sistema eleitoral chileno desde que, em 1990, Pinochet deixou a presidência. O mal-estar escalou vários graus, em princípios de maio, com o assassinato de um trabalhador florestal pelo corpo Carabineiros, no sul dos indígenas mapuches, onde a raiva ancestral é sentida à flor de pele.


 



Novo modelo de transporte em Santiago é o símbolo da crise do governo Bachelet 



Pela primeira vez em anos, os políticos se mostram preocupados pelo rumo que os acontecimentos estão tomando. O “modelo” econômico faz água. Um recente estudo de dois economistas da Universidade do Chile, Orlando Caputo e Graciela Galarce, assinala que, em 2006, se produziu uma saída recorde de capitais: 25 bilhões de dólares, 17% do PIB. Asseguram que a economia chilena vive um “esgotamento”, e que “só o aporte da mineradora estatal Codelco permite que não aflore uma crise”. No país que glorificou o setor privado como nenhum outro, é o setor estatal que está salvando a situação.



A maior parte dos capitais que fugiram, ou retornaram, segundo o jargão tecnocrático, pertencem ao setor de mineração, que se viu beneficiado com a desnacionalização do cobre.



O sindicalista Pedro Marín declarou ao diário Clarín: “Codelco tem 30 por cento do negócio e as estrangeiras 70 por cento. Mas em seus aportes ao fisco é ao contrário: Codelco aporta 70 por cento e as estrangeiras 30 por cento, em que pesem seus lucros”. A impressão é que a situação econômica do “modelo” está por um fio, mas de cobre: em 2003 era cotado a 80 centavos de dólar a libra, e neste ano alcançou os três dólares. A saída de capitais, em 2006, equivale a 84 por cento do orçamento do Estado e, a continuar, ameaça frear o crescimento em seco.



Modelo perverso


A questão do Transantiago é mais grave ainda, porque desvela diante da população a perversão do “modelo”. O governo entregou ao setor privado a remodelação do caótico sistema de transporte coletivo da capital. O Transantiago se inspira no Transmilênio de Bogotá: grandes unidades circulam por pistas separadas, com percursos troncais e secundários. Estreou em fevereiro e foi um caos. Faltam unidades porque os empresários não querem arriscar. Nos bairros mais pobres, onde é menos rentável, os ônibus não chegam ou o fazem com enormes lacunas. A população deve caminhar quilômetros para alcançar uma parada onde possa aguardar até uma hora a chegada do ônibus. Milhares perderam seus empregos por chegar tarde. E o metrô está tão congestionado que não dá vazão.



A bronca inicial, que gerou algumas manifestações espontâneas, vem seguida de indignação à medida que se conhecem os níveis de improvisação e de especulação dos empresários. Como o serviço dá prejuízo (30 milhões de dólares só em abril), o governo decidiu auxiliar os empresários privados. O eficiente metrô estatal foi forçado a emprestar dinheiro ao Transantiago, e agora o governo de Bachelet propõe ao parlamento um empréstimo de 290 milhões para uma companhia privada que não cumpriu contratos. Até deputados da democracia-cristã questionam que o Estado esteja apoiando a ineficiência empresarial. O ex-presidente, Eduardo Frei Ruiz-Tagle, um democrata-cristão neoliberal, pediu que se estabeleça “um sistema de transporte estatal como nas grandes cidades do mundo”. Algo impensável há alguns anos.



Um setor da governante Concertação difundiu, há duas semanas, um documento intitulado “As disjuntivas”, em que pede para “introduzir retificações no atual modelo de desenvolvimento, enfrentar as desigualdades e avançar na construção de um sistema integral de proteção social”. O oficialismo sente que o solo afunda. Vai mais longe. Critica um “modelo” para o qual “mais importante que a coesão social de um país é seu nível de reservas fiscais”; denuncia “graves problemas de qualidade da educação, saúde, habitação, proteção do ambiente, precariedade trabalhista” e um longo etcétera; adverte sobre “a precária qualidade de nossa democracia” e censura “as enormes injustiças e desigualdades”. Quase um manifesto da oposição de esquerda.



Sociedade civil se rearticula



Na realidade, o problema está em outro lado. Agora o protesto social tende a ir mais além dos setores que sempre estiveram ao arrepio do modelo neoliberal chileno, como o povo mapuche e a juventude contestadora, esgotados e isolados pela repressão. Uma longa greve no sul, onde sete mil trabalhadores florestais ganharam a queda de braço com os poderosos e soberbos empresários do Grupo Angelini, um dos mais fortes do Chile, é um sintoma dos novos tempos. Os trabalhadores usaram maquinaria pesada da empresa para resistir aos Carabineiros, com um saldo de vários feridos e um morto.



Em algum momento os protestos de trabalhadores, moradores, mapuches e estudantes podem confluir. Sabemos que quando os de baixo não são detidos pela repressão, os de cima começam a pensar em introduzir mudanças para retocar a maquiagem.