Paulo Markun e a TV pública no Brasil

O jornalista Paulo Markun – que assumirá em junho a presidência da Fundação Padre Anchieta, mantenedora da Rádio e da TV Cultura – esteve em Fortaleza na última semana e falou sobre a instalação da TV pública no Brasil, projeto que envolve diretamente a F

O senhor assume em junho a presidência da TV Cultura em substituição a Marcos Medonça. Quais serão seus planos para os próximos três anos de gestão?


 


Não vou falar sobre os planos para a TV Cultura antes de tomar posse. Não vou falar nada. Dezenas de jornais já me procuraram abordando o assunto, mas não direi uma palavra até a minha posse. Não vou dar entrevista sobre este assunto.


 


Mas pelos menos a TV Cultura está envolvida, também, no debate sobre a TV pública, projeto do ministro Franklin Martins…


 


Sim, sobre isso falarei.


 


Como o senhor analisa o debate? Para uns, uma televisão do executivo, enquanto outros defendem a instalação de uma TV pública no Brasil, nos moldes das experiências de países como a Inglaterra e a Alemanha…


 


Os processos são diferentes entre uma TV pública e uma estatal. Essa distinção está clara para a população, os formadores de opinião e até mesmo para o governo. Você tem a TV estatal com um papel definido – a divulgação e até mesmo o esclarecimento dos atos do executivo. Esse tipo de TV existe em todos os países do mundo. A TV pública, não. Ela é uma construção. Nasceu basicamente na Inglaterra, após a Segunda Guerra Mundial, com a BBC, de Londres. Teve um forte desenvolvimento na Europa. Durante um longo período, a BBC foi um meio de comunicação eletrônica dominante. Essa realidade foi mudada a partir de Margareth Thatcher, com a onda das privatizações. O que temos no Brasil é uma realidade completamente diferente do modelo europeu. Não é possível aplicá-lo no Brasil, na medida em que não teríamos condições de obter financiamento junto ao grande público, como ocorre na Inglaterra. Temos um modelo um pouco parecido com o dos Estados Unidos. Agora, creio que a discussão que está colocada é de muita importância em torno da instalação de uma TV pública no País. O governo, por intermédio do ministro Franklin Martins, tem insistido num modelo coerente de TV: as decisões seriam tomadas por um conselho a partir de um orçamento estipulado, e não ao sabor dos interesses do governo. Esses são dois passos fundamentais para a criação de uma TV pública no País.


 


A Fundação Padre Anchieta não seria o ponta-pé inicial para a concretização da TV pública no País?


 


A Fundação Padre Anchieta – que completará 40 anos em setembro – é com certeza, sem puxar a brasa para a minha sardinha, a instituição que está mais avançada para a concretização da TV pública no País. Ainda assim sofre dificuldades com falta de recursos, com incompreensões ao longo da história – muitas delas, políticas. Ao mesmo tempo, ela opera num mercado de muita qualidade. A crítica que se faz às redes comerciais é que elas não cumprem com a Constituição: uma programação cultural, informativa, educativa. Agora, não há como negar que a qualidade da TV comercial brasileira é muito boa, fruto de muitos anos de investimentos. Quando você compara a TV Globo, por exemplo, com as tevês públicas da Espanha ou de Portugal chega a conclusões diferentes. A TV Globo tem programação de melhor qualidade, até mesmo no que toca à promoção cultural.


 


Parece que a cada novo desdobramento do debate fica claro que ainda falta um bocado para chegarmos a um consenso sobre o que entendemos por TV Pública…


 


Eu acho que esse debate é de grande importância e que a TV pública não nascerá da noite para o dia. É um processo longo, vagaroso que, agora, está sendo apenas anunciado. Imagine você reunir as televisões estatais de vários estados brasileiros, de diversos partidos, para estabelecer um tipo de ação conjunta entre elas. Isso é muito complicado.


 


Mas esse, me parece, seria o desejo do governo Lula?


 


Mas é um desejo também da Associação Brasileira das Emissoras Públicas Educativa e Comunitárias. É dessa possível conjugação, dos dois desejos, com algum tipo de disposição da sociedade, que poderá nascer a TV pública. Insisto mais uma vez que o processo não é fácil. Nada se resolverá num passe de mágica. É preciso debate, discussão, investimentos, tentativas de erros e acertos. Agora, é muito positivo o debate que ora está ocorrendo.


 


Com tanto debate, a TV pública não pode ter o mesmo destino da Ancinav (Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual), projeto engavetado pelo Congresso Nacional?


 


Acho que essa possibilidade inexiste. Houve uma incompreensão, não ficou muito claro o objetivo da Ancinav. Por isso, acho, o projeto não foi pra frente. Agora, o ministro Franklin Martins estabeleceu, logo de início, diretrizes muito claras, objetivas. Resta saber se as intenções para a criação de uma tevê pública no Brasil se tornarão realidade. São várias pendências – do Congresso Nacional, da integração da Radiobrás e da TVE do Rio de Janeiro, enfim, do tipo de operação que será proposta. Tudo deverá ocorrer através de normas, regras que não sejam estabelecidas de cima para baixo. Uma rede desse tipo é uma construção muito delicada. Acho o projeto possível. Muitas áreas se mostram satisfeitas e defendem o projeto. Mesmo pela fiscalização da sociedade, não existirá qualquer possibilidade que tenhamos uma TV pública que seja estatal.


 


Mudando de assunto: o senhor também é um escritor assíduo de biografias, romances-reportagem. Sei que em junho estará assumindo novas tarefas na TV Cultura, mas tem algum novo livro em mente?


 


Trabalho há cinco anos na biografia de um conquistador espanhol que esteve no Brasil em 1541, chamado Alvarez Nuñez Cabeza de Vaca. Ele foi o primeiro homem branco a conviver com os índios da Flórida. Andou 18 mil quilômetros a pé, nu e descalço, e depois voltou à Espanha. Tornou-se governador do Rio da Prata. Chegou à Ilha de Santa Catarina, onde hoje é Florianópolis. Andou a pé até o Paraguai e implantou um governo que tratava bem os índios. Por causa disso, acabou sendo derrubado, levado para a Espanha e condenado. O livro vai chamar-se “O Julgamento de Cabeça de Vaca”. Conto essa história a partir do processo judicial ao qual tive acesso.


 


Como o senhor descobriu essa fascinante história?


 


Ele é um personagem conhecido mais no Sul do País do que em outras regiões. Lá, em Santa Catarina, por razões óbvias, ele foi o primeiro governador. Quando escrevi o livro sobre Anita Garibaldi, tomei contato com a primeiras referências sobre ele. Há um livro que ele mesmo escreveu, que volta e meia é republicado. Passei a pesquisar o assunto e logo, logo começo a escrever o texto. Não tenho prazo para acabar, principalmente diante das novas funções que assumirei.


 


O senhor encara essas novas funções como um desafio?


 


Sem dúvida. É um desafio, uma oportunidade.


 


A sua questão com a TV Cultura também é muito afetiva. Foi lá que você trabalhou com o Vladimir Herzog (diretor da emissora, assassinado pela ditadura militar) e também foi preso…


 


Eu trabalhei três vezes na TV Cultura. Com o Vladimir Herzog, em 1975. Tive uma rápida passagem no anos 80. E, agora, estou há nove anos na emissora. É um lugar que tenho mais do que uma relação profissional, mas também afetiva.


 


O senhor foi preso com o Vladimir Herzog?


 


Não, fui preso uma semana antes dele.


 


Você pressentiu que, quando preso, Vlado seria morto?


 


A sua prisão era anunciada. Essa ação sobre o Vlado já era anunciada. Eu era chefe de reportagem na época e havia uma campanha segundo a qual os comunistas tinham tomado a TV Cultura. Isso desde que ele tomou posse como diretor. Foi uma pressão muito grande dos organismos de segurança nacional, engajados na campanha que buscava complicar o presidente Geisel e o governador Paulo Egídio Martins, em São Paulo. Ao mesmo tempo ocorria, dentro desse processo, o desmantelamento do Partido Comunista, partido do qual eu e o Vlado éramos militantes. Essa conjugação de fatores nos fazia supor uma iminente prisão, o que ocorreu. O que jamais passou pela minha cabeça é que ele pudesse ser morto na prisão. Principalmente, naquelas circunstâncias. Escrevi dois livros sobre o assunto. Um chamado “Vlado: retrato de um homem e de uma época”, uma coletânea de depoimentos. Em 2005 publiquei “Meu querido Vlado”, onde conto um pouco dessa história do meu ponto de vista.


 


Continua comunista ou o senhor mudou dentro da nova quadra histórica que vivemos? Agora, com a TV Cultura o senhor se aproxima mais do governo Lula e do ministro Franklin Martins, também ex-militante radical da esquerda, que por sua vez está no governo depois de ter passado pela Globo.


 


Eu diria que não integro governo nenhum. Fui convidado, eleito por uma fundação, através de um conselho, representante da sociedade. Mas de todo modo a gente sempre muda. Mas eu diria que tenho uma ilusão, pode ser somente uma ilusão, e nisso não mudei. Continuo achando que o mundo é injusto e pode tornar-se mais justo. O que mudou, talvez, é a maneira de transformar essa situação. Até porque a realidade do planeta mudou.


 


Globalização, informação, Internet… Um mundo com novos paradigmas.


 


A Internet está revolucionando e vai revolucionar de tal maneira os processos sociais, atingindo a todos. Até a maneira de se fazer política. A comunicação, como um todo, terá, nos próximos anos, mudanças substanciais. Realmente vivemos uma quebra de paradigmas.


 


O senhor redesenharia o futuro do jornal impresso em meio a tantas mudanças?


 


O jornal impresso fica em palcos de aranha. O impresso tem que buscar uma nova forma para manter-se no mercado. Não tenho fórmula mágica para isso. Mas, ao examinar a queda de circulação do impresso e a redução de circulação entre os leitores mais jovens, chego à conclusão de que o impresso não terá muito tempo de vida, pelo menos como ele existe hoje. Eu continuo sendo fiel, usuário do jornal impresso. Isso apesar da Internet, da televisão, do rádio. Mas meus filhos lêem jornal pela Internet, quando lêem. São pedaços de jornais, aliás de vários jornais – ingleses, americanos, franceses. Eles têm acesso até a jornais coreanos pela Internet. Mecanismos de tradução instantânea já existem. É uma nova maneira de se disseminar a informação. O papel do jornalista não é mais o de protagonista. Eu não acredito que a anarquia, a desorganização, hoje característica da Internet, possa durar muito tempo. Mas o fato é que o modelo que estamos acostumados em relação ao jornal impresso – eu sou jornalista há 36 anos – está desaparecendo.


 


O jornalista Sérgio Augusto comparou a Internet com a nova invasão dos bárbaros.


 


Puro preconceito. Tem bárbaro, visigodo, turco, otomano, francês, alemão. Tem tudo na Internet. Ela proporciona que um grupo ou até mesmo um indivíduo consiga visibilidade. Uma projeção que jamais poderia ser alcançada pelos meios tradicionais. Infelizmente essa projeção ainda está fixada no exibicionismo, no voyeurismo, na superficialidade. Mas a rede também apresenta informações de qualidade. Muitas das informações sobre meu novo livro consegui através da Internet. Agora, o principal documento, um calhamaço de 900 páginas, os autos do processo, tive que viajar para Sevilha. Comparo a Internet como uma nova corrida do ouro. Ela contém anarquia, radicalismo, irresponsabilidade. Por outro lado, quebra com a hegemonia dos grandes grupos de comunicação.


 


Por falar em grupos de comunicação, quem mais contamina o jornalismo hoje: o poder político ou o mercado?


 


O mercado é o poder.


 


Quer dizer, vivemos uma democracia de fachada ou de mercado…


 


Vivemos uma democracia, sim. Essa pergunta sua é emblemática porque coloca como premissa, pelo menos num primeiro momento, que na ditadura militar era melhor. Não, era muito pior. A democracia que conseguimos é positiva. Permite a escolha do presidente. E se o presidente pisar na bola, corre o risco de perder o cargo, como ocorreu com Collor de Melo. O que eu diria é que nossa democracia é delimitada pelas regras do mercado, do sistema econômico. Mas de todo modo o poder está no mercado, muito mais do que nas instituições do poder efetivamente.


 


Fonte: DN