África do Sul: Imigrantes ilegais atiçam xenofobia no país

Reportagem do jornal francês Le Monde mostra como a entrada cada vez maior de imigrantes ilegais na África do Sul tem despertado em parte de sua população um forte sentimento de xenofobia.

Confira abaixo o texto:



A invasão negra de um ex-baluarte branco



“Shaft Kop!” Ao ouvirem o berro do policial, todos os homens, agachados na plataforma da estação, baixam a cabeça e ficam calados. Todos entenderam esta ordem, expressa numa mistura de inglês e de afrikaans, o idioma da África do Sul. Alinhados por grupos de cinco, os 480 imigrantes clandestinos aguardam o trem que os reconduzirá para o seu país de origem, o Zimbábue. A noite já está chegando quando o trem, finalmente, começa a andar. A viagem vai durar 17 horas. Os homens foram distribuídos por sete carros, enquanto as poucas mulheres, menos de 30, que integram o grupo, ficam no oitavo. Com os seus assentos de imitação couro laranja, seu cheiro de cinza de cigarro fria, de transpiração e um vago odor de urina, o trem dos serviços da imigração se parece muito com os antigos trens de subúrbios parisienses.



Antes da partida, cada expulso recebe um rolo de papel higiênico, mas não há água o bastante nos carros, e, no meio da noite, praticamente todos os toaletes estarão inutilizáveis. Em relação aos alimentos e às bebidas, aqueles que têm um pouco de dinheiro poderão comprar alguma coisa quando o serviço ambulante passar. Os outros nada terão. Vinte e cinco policiais os acompanham, ao menos dois por vagão, em cada extremidade. Toda vez que o trem diminui o ritmo ou pára, eles urram a mesma ordem, “Shaft Kop!”, e todos os expulsos se agacham, com as mãos sobre a cabeça. Apesar da atitude um pouco teatral dos policiais que pulam sobre os braços dos assentos para latir as suas instruções, o ambiente até que está bastante descontraído. Para a maioria desses passageiros, esta não é a primeira viagem, longe disso.



“Eu estarei de volta em Johannesburgo antes de vocês!”, grita Thabani, dirigindo-se à capitã Daphné Steyn. A responsável do trem sorri diante da provocação. “Eu sei que ele está certo. Quando nós fazemos o percurso de volta, com o trem vazio, a viagem demora mais de quinze horas; caso ele tomar um ônibus, ele chegará antes de nós”, suspira a jovem mulher. Thabani sabe do que está falando. Aos 32 anos, este zimbabuense está se submetendo à sua sétima expulsão. “Às vezes, a gente atravessa novamente a fronteira no mesmo dia, ou ainda, dá um tempo, vai visitar a família e retorna alguns dias depois”, conta. Thabani é garçom num restaurante em Johannesburgo, a capital econômica da África do Sul. Ele tem uma mulher, e filhos.



Por volta das 23h, as pessoas procuram se acomodar na posição horizontal, dentro da mais completa confusão, para uma noite que será curta e agitada. Alguns se instalam dentro das redes para bagagens, enquanto outros ficam deitados diretamente no chão. Ao amanhecer, a capitã Steyn procede à contagem, repetidas vezes: 40 pessoas não respondem à chamada. Elas pularam do trem, aproveitando-se de que este andava devagar ou de uma parada. A capitã se diz bastante satisfeita. “Quarenta, não é tanto assim, durante uma viagem ao Zimbábue; em geral, um número maior de pessoas desaparece”, garante. No passado, as janelas estavam vedadas. O ministério do Interior mandou reabri-las depois da intervenção de organizações de defesa dos direitos humanos.



“Eu prefiro não pular, é perigoso demais. Você nunca sabe onde e sobre o que você vai aterrissar. De qualquer forma, a gente vai voltar”, explica Shelton. Ele mora num “shack”, une cabana construída com materiais os mais diversos, em Alexandra, um dos bairros os mais pobres de Johannesburgo. “O tempo todo, a gente está com medo de ser preso; a gente passa o tempo todo correndo para escapar dos controles”, diz. “Se você não tiver um pouco de dinheiro no bolso, você acaba sendo levado até Lindela, e depois para o trem”.



Lindela, que fica a algumas dezenas de quilômetros a oeste de Johannesburgo, é o centro de detenção onde milhares de estrangeiros em situação irregular ficam aguardando até serem reconduzidos para a fronteira. Toda semana saem dois trens que combóiam 500 a 800 pessoas, um com destino ao Zimbábue, o outro rumo ao Moçambique. Entre 1994 e 2000, mais de 600.000 pessoas foram expulsas. O ritmo das expulsões acelerou-se ao longo dos últimos anos, com cerca de 150.000 pessoas reconduzidas até a fronteira por ano, das quais uma maioria para o Zimbábue, onde grassa uma crise econômica sem precedente. A título de comparação, a França expulsou 24.000 estrangeiros em situação irregular em 2006.



O centro de detenção de Lindela é administrado há mais de dez anos por uma companhia privada, a Bosasa, que gerencia também o aeroporto de Johannesburgo e a reforma dentro de várias prisões. No dia em que nós o visitamos, há 1.085 pessoas apenas detidas no centro, que tem capacidade para receber até 4.000. No terreno de esporte, os ganenses enfrentam os nigerianos. “Eu tenho uma sorte incrível, pois eu assisto todos os dias a uma competição à qual vocês só podem assistir uma vez a cada cinco anos: a Copa da África das nações”, diz em tom de brincadeira Thabo Mabetha, o diretor do centro. Enquanto os moçambicanos e os zimbabuenses, em geral, ficam retidos por alguns poucos dias em Lindela, os súditos de outros países aguardam durante semanas, por vezes durante meses, até serem informados do que acontecerá com eles.


 


Ninguém se queixa das condições de vida. Mas a cólera ronda tão logo é abordada a questão da duração da detenção. Zacharie chegou do Congo há seis meses. Dois dias mais tarde, ele foi preso pela polícia e conduzido até Lindela. “Eu quero ser deportado”, garante o jovem rapaz, que diz ter fugido da região muito instável do Kivu. Por sua vez, Nduka, um nigeriano, está aqui há mais de quatro meses. “Não é justo, eles não têm o direito de nos manter aqui por mais de trinta dias”, explica.



Nduka conhece efetivamente bem a lei. Mantshele Tau, o porta-voz do ministério do Interior, admite que os trâmites não raro se arrastam por um tempo excessivo, mas ele atribui a responsabilidade por essas delongas às embaixadas encarregadas de virem até aqui para reconhecer os seus súditos. A Comissão nacional dos direitos humanos denunciou esses longos períodos de retenção e suspeita a companhia privada que gerencia o centro, que recebe 50 randes (R$ 13,46) por dia e por pessoa, de aumentar a duração das estadias.



A gestão da imigração é um problema relativamente recente para a África do Sul. Durante o apartheid, as migrações se limitavam a europeus, que eram bem-vindos, ou alguns asiáticos. Poucos eram os africanos que tinham então a idéia esdrúxula de migrar para a África do Sul, com a exceção de alguns súditos dos países vizinhos contratados para trabalhar nas minas. Tudo mudou a partir de 1994 e da eleição de Nelson Mandela.



De repente, o país, que concentra por si só cerca da metade do PIB (Produto Interno Bruto) do continente, se tornava um eldorado, atraindo os vizinhos mais pobres, e até mesmo candidatos ao exílio vindos de países distantes, como a República Democrática do Congo, o Gana, a Nigéria ou o Senegal. Alguns deles fizeram enormes sacrifícios. Foi o caso de Abdul Diallo, um guinense. Tão logo ele soube que Mandela havia sido eleito, ele deixou Conakry. Ele precisou de dois anos para alcançar a África do Sul, de ônibus, com diversas paradas. “Quando cheguei aqui, eu tinha o equivalente a 5 euros [R$ 13] no bolso”, conta este alfaiate que emprega não mais que uma dezena de pessoas e borda “boubous” (traje típico, conjunto formado por uma túnica e um boné) de grande luxo. Casando-se com uma sul-africana, ele conseguiu obter a nacionalidade, mas, ao longo dos anos, ele conviveu com o medo de uma detenção. “No fundo, os sul-africanos não gostam de nós”.



Os estrangeiros sofrem com a xenofobia que se desenvolve no país. O seu número é estimado em pouco mais de 400.000 em situação regular, entre 3 milhões e 6 milhões em situação irregular (para uma população de 44 milhões de habitantes).



Testemunhos que foram colhidos para um estudo realizado pela universidade de Wits dão conta de maus tratos, de trotes e humilhações infligidos por alguns funcionários do ministério do Interior. Por não possuírem nenhuma conta bancária, os imigrantes clandestinos com freqüência circulam com muito dinheiro líquido nos bolsos. Para os policiais corruptos, estes são “verdadeiras máquinas distribuidoras de moedas ambulantes”, constata este enquête.



Em Johannesburgo, a maioria dos imigrantes evita ir morar nos “townships” (bairros favelados), como Soweto. Eles preferem ficar juntos, e se instalam em bairros próximos do centro da cidade, geralmente de reputação duvidosa, e deteriorados, como Hillbrow ou Yeoville. Os incidentes, por vezes violentos, dos quais eles são vítimas, se multiplicam. Nos bairros pobres da Cidade do Cabo, os comerciantes somalis, especializados no pequeno comércio varejista, são regularmente atacados e saqueados. Segundo uma recente pesquisa, 75% dos sul-africanos seriam favoráveis a um fechamento total das fronteiras ou, pelo menos, a uma imigração muito restritiva, enquanto 64% se dariam por satisfeitos se todos os estrangeiros saíssem do país.



Num país onde o desemprego atinge cerca de 30% da população ativa, os estrangeiros são considerados como concorrentes. Eles também são acusados de serem responsáveis pela criminalidade galopante. Os boatos que grassam em meio à população garantem que os nigerianos estão no comando das redes de drogas, que os zimbabuenses são especialistas nos ataques de furgões blindados e que os moçambicanos são exímios em praticar arrombamentos. Não há nenhuma estatística, no entanto, para confirmar essas afirmações, pelo contrário. Os estrangeiros representam apenas 3% da população carcerária e, na maioria dos casos, são muito mais vítimas do que autores de crimes e delitos. A política em matéria de imigração está endurecendo cada vez mais. Os controles nas fronteiras foram reforçados.



“O país está dividido entre uma dívida moral para com os países africanos que lutaram contra o apartheid, e o medo de uma possível imigração maciça”, explica Aurélia Wa Kabwe Segatti, uma especialista francesa da imigração na África austral. Um dos sites oficiais na Internet do governo avisa os candidatos à imigração: “A África do Sul é um país de oportunidades, não uma terra de mel e de leite”.