Relato: camponesa perdeu marido e 4 filhos na luta pela reforma agrária

Elizabeth Teixeira tem 82 anos e é um dos símbolos da luta do trabalhadores sem-terra no Brasil. Na última quarta-feira (13), no Ginásio Nilson Nelson, em Brasília, durante a realização do 5º Congresso Nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Te

Pessoa simples, traz um sorriso fácil e uma voz firme num corpo frágil pela idade. Viúva de João Pedo Teixeira, fundador e líder da Liga Camponesa de Sapé, na Paraíba, Elizabeth tornou-se um dos ícones da luta do trabalhador rural. “Na luta, perdi filhos e marido. Derramei lágrimas e sangue, mas ainda sonho em ver a reforma agrária implantada nesse país”, afirma a nordestina.



A idade avançada não é barreira para essa filha de Sapé (PB). Sempre que pode, percorre o país atenta à luta dos trabalhadores sem-terra em conferências, atos públicos e congressos. “Não meu canso, meu filho. Minha luta ainda não acabou”, pontua. Essa luta, segundo ela, começou há 45 anos, em agosto de 1962, quando João Pedro foi assassinado com três tiros nas costas após uma emboscada.



Prometeu ao marido, já morto, que sua luta não terminaria ali. A história de Elizabeth, digna de roteiro de cinema, virou filme pelas mãos do cineasta Eduardo Coutinho. O documentário Cabra Marcado pra Morrer (1981) é uma das mais importantes obras cinematográficas sobre a luta do trabalhador rural brasileiro. Filha de fazendeiro, proprietário de 300 hectares de terra e comerciante, ela nasceu em 1925. Só estudou até a quarta série primária. Largou a família e, sob protestos do pai, foi viver com o lavrador João Pedro. O ano era de 1942.



As ligas camponesas, nos anos 40 e 50, constituíam-se num forte movimento político no nordeste. Em 1958, João Pedro cria a Liga Camponesa em Sapé. Aumenta a organização dos trabalhadores na região, ao mesmo tempo em que crescem as ameaças a ele. “À noite, eram tiros e mais tiros em volta da nossa casa. João Pedro então dizia: 'Filha, vão tirar minha vida. Você continua minha luta?' E eu nunca tive resposta para dar a ele. Olhava para os 11 filhos, que choravam quando o pai dizia que seria morto”, lembra Elizabeth.



E veio o assassinato. O líder camponês foi a João Pessoa resolver assunto dos trabalhadores rurais. Na volta foi apanhado numa emboscada. A esposa, acompanhada dos filhos, foi ao encontro do corpo do marido. “Peguei na mão dele, e fiquei toda melada de sangue. Aí eu disse: 'João Pedro, na presença dos nossos filhos, eu prometo continuar sua luta”. E assim foi… Ela assumiu o sindicato, e começaram as perseguições.



Foi presa diversas vezes. “Policiais chegavam à minha casa para me prender. Eu ia até o portão falar com eles, e era filho agarrado na minha saia, de um lado e de outro, chorando. Tinham medo que eu morresse como o pai”, conta. O golpe militar de 1964 aumentou ainda mais a pressão no campo – lideranças foram presas e o movimento fortemente perseguido.



Um dia, um carro da polícia parou à sua porta. O tenente avisou a Elizabeth que seria presa. Ela pediu para pegar os documentos e entrou de volta em casa. Os filhos choravam. A filha mais velha, Marluce, abraçou a mãe e disse, segundo conta a ex-líder camponesa: “Mãinha, vão tirar sua vida. Não quero que seja morta como painho”. Elizabeth acalmou a filha, e foi levada para João Pessoa. Não foi detida, apenas respondeu a um longo interrogatório. Voltou a Sapé. E veio o choque. Marluce, no desespero com a possível prisão da mãe, comprou veneno de rato e o ingeriu com mel. “Quando cheguei em casa, ela estava morrendo. Levei ela ao médico, mas chegou morta”, recorda. Meses depois, um outro filho seria vítima da violência no campo.



Segundo Elizabeth, o menino Paulo, de 10 anos, costumava ir para janela toda vez que ela saía para reuniões no sindicato. A criança, ainda carregando na memória o assassinato do pai, gritava: “Mataram o painho, mas quando crescer, eu vou matar o bandido que fez isso!”. Ela não dava bolas para o que o Paulo dizia. Mas, outros se importavam e trataram logo de cortar a raiz. “Eu estava fazendo uma reunião com os trabalhadores de engenho na sala de casa, e ouvi um disparo. Corri para fora e quando cheguei, lá estava meu filho no chão. Levou um tiro na cabeça, mas não morreu. Tiraram a bala, mas o menino ficou cego. Depois, ficou doente da cabeça, e morreu!”, lembra Elizabeth sem deixar a voz fraquejar.



Logo depois, ela ficou presa em Recife (PE) por alguns meses. Quando saiu, procurou o pai que estava com alguns de seus filhos. Procurava abrigo, mas foi expulsa. Disse o velho, segundo Elizabeth: “Aqui você não fica. Pode voltar daí do portão”. Foi ajudada, então, por um velho comunista, amigo de João Pedro. Em meio a luta, e já na clandestinidade, ela foi para o Rio Grande do Norte onde passou a viver com o falso nome de Marta Maria da Costa. Os filhos ficaram para trás, distribuídos na casa de parentes – um deles foi para Cuba, à convite de Fidel Castro, onde viveu e formou-se em Medicina. Apenas um pôde acompanhar a mãe: Carlos.



Como lavadeira, Elizabeth sustentou a si e o menino. Por anos, ninguém desconfiou de sua identidade no lugarejo de São Rafael. Até que chegou um dia que ela cansou de não fazer nada pela comunidade pobre. Apesar do pouco estudo, decidiu alfabetizar as crianças. “Via as crianças pelas ruas, e decidi alfabetizá-las. Usei a sala de minha casa, que tinha só um quarto”. De acordo com ela, dois dos seus alunos continuaram os estudos e hoje são advogados. E traz na ponta da língua: “O filho da terra precisa ser alfabetizado. Da leitura vem a luta, a consciência”.



Mesmo na clandestinidade, costumava se reunir no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de São Rafael e debater as questões agrárias. Mas como Marta Maria, pois Elizabeth já não existia. Ali, esquecida do mundo, ficou por longos 16 anos. Voltou à Paraíba em 1981, após a Anistia (1979). Em João Pessoa, foi trabalhar num Centro de Direitos Humanos, dando continuidade às lutas sociais. “Minha luta foi pesada e sofrida. Mas estou ainda aqui, de pé”.



Ela, que participou do 1º Congresso Nacional do MST, em 1985, sublinha que o movimento substituiu as ligas camponesas na luta pela terra. “Confio nessa juventude e nesse povão”, resume. A ex-líder camponesa espera do “companheiro” Lula a realização da reforma agrária: “Como presidente, chegou a hora dele fazer a reforma. Mas o trabalhador do campo está sendo esquecido pelo governo. Chegou o momento do companheiro resolver esse problema”, enfatiza.



Quase cinco décadas depois de atuação político-sindical, Elizabeth sublinha que não esmoreceu no sonho de ver a reforma agrária implantada no país. “É a única forma de sobrevivência do povo do campo, que não pode viver mais na miséria, morrendo de fome e sem saber ler e escrever. Tenho 82 anos, e quero ver a reforma agrária no Brasil”, frisa. Sobre os latifundiários, é sucinta: “Queria apenas que eles não cometessem tanta violência, e que tivessem mais consciência da vida”.



Dos onze filhos, hoje só lhe restam seis – três foram assassinados e uma se suicidou. O último morreu no ano passado – era jornalista. Refletindo sobre a vida, Elizabeth passa a divagar sobre sua luta pelo trabalhador rural. “Às vezes me pego pensando porque ainda estou na luta, depois de tanta dificuldade. Passei para meus filhos que o pai deles morreu pelo homem do campo. Por isso não penso em parar, largar meus companheiros. Minha luta ainda não acabou. A reforma agrária bate à porta”, conclui.