À sombra da alma cearense – Gilmar de Carvalho

Ensaio do professor Gilmar de carvalho para o anuário do Ceará 2007, traz uma nova proposta para se pensar a cearensidade.

Gilmar de Carvalho era um estudante quando entrou na redação do jornal Gazeta de Notícias, no último ano da década de 60, e assentou praça como cronista. A timidez severa contrastava com a verve da pena. Chamou a atenção até dos fardados da época que, quando viram as crônicas do livro Queima de Arquivo, chamaram o autor para uma conversa. Acusação: textos pornográficos e subversivos. O jornalista, publicitário e ficcionista passou para a academia quando a década de 80 já estava quase se retirando.


 


É de lá que esse cidadão cearense, de 58 anos, tem vasculhado e cutucado o Ceará, sua cultura, seu povo, suas elites, seus personagens, seu jeito, suas falas. Entre a Maraponga, onde mora, e o Benfica, onde dá aulas no Departamento de Comunicação Social da UFC, o professor Gilmar espia a cidade quase como um estrangeiro, um viajante que disseca os novos tempos, ora com uma nostalgia negada, ora maldizendo uma Fortaleza esgarçada, estéril de afetividade, com um riso frouxo sedento de mercado.


 


O olhar provocador, ávido por desbancar mitos e estereótipos que cercam a construção de um nascido do sol e do areal ceaerenses, esquadrinha sentimentos e vai além. Quer entender a alma dos gerados por cá com toda sua complexidade. ''Tem que haver uma explicação para sermos do jeito que nós somos'', afirma. O que era incômodo transformou-se em hipótese para discussão. No texto Anotações para uma história cultural do Ceará publicado na edição 2007 do Anuário do Ceará, recém lançado pelo O POVO, Gilmar de Carvalho propõe uma janela nova para se entender a cearensidade: o mito da rejeição.


 


O pesquisador empurra para o lado mais de um centenário de tradição alencarina, que sustenta no mito de Iracema a gênese cearense – parida de uma cultura híbrida do europeu e do índio – e abre passagem para a tese gilmariana do ''mito da rejeição''. Este, fincado na negativa do donatário Antonio Cardoso de Barros de receber as terras onde hoje é o Ceará. ''Essa rejeição tem que, ou ela deve, ou ela pode interferir no rumo desse processo da construção de um cearense'', afirmou.


 


Transformar a perda num luto eterno; ser o maior infeliz diante da felicidade alheia; ter uma disposição hercúlea para a maledicência; virar o rosto para a boa educação; ser dotado de uma certa dose de abuso e crueldade. São esses os traços que permeiam as relações e a organização de uma massa de gente chamada povo cearense – e que perturbam o professor. O ser rejeitado também estaria presente na constante negação do passado, da própria herança histórica e que esbarra no quase desespero pelo novo. O tema é duro. Gilmar de Carvalho recupera a tradição ensaísta para tirar o Ceará do colo. ''Eu diria que talvez seja necessário ser um pouco cruel para compreender a crueldade que reina aqui'', atesta, enquanto rodeia o olhar pela sala, movimenta as mãos, pensa. ''Essa não é nenhuma verdade definitiva, não fiz nenhum estudo, é uma tese, uma proposta dura'', compreende.


 


Noutro momento, reencontra o termo ''rejeição'', procura dar-lhe outro significado, outra possibilidade. Até consegue, mas não passa do léxico; o simbolismo que fermenta as idéias, tão caro a qualquer proposta de contar a história de um povo, já está maduro. Agora, é só colher.


 


A partir de quais reflexões o senhor levantou essa hipótese do mito da rejeição?


 


Sempre me incomodou muito essa visão do mito de Iracema, que eu acho reducionista, embora seja um admirador de José de Alencar. O caso é que, embora considere Iracema um livro muito interessante e fundamental. dentro de uma coleção cearense, eu acho simplista e muito reducionista essa visão de um europeu que chega e encontra a indígena, acontece uma grande paixão e, depois resulta um filho dessa união, híbrida de duas culturas. Isso me pareceu muito pouco e houve um certo exagero desse ''iracemismo'' no governo Lúcio Alcântara. Era Palácio Iracema, Iracema em francês, em alemão, Iracema em edição de luxo com todos os recursos das artes gráficas e pouco conteúdo. Foi a partir do questionamento desse mito, que eu considero importante, senão o único, que eu procurei levantar essa hipótese. Acho que nós precisamos de um estudo, que não vai ser feito por mim, mais aprofundado para entendermos a psicologia do cearense, para entendermos o porquê de nós sermos assim. Tem que ter uma explicação, evidentemente essa explicação passa pela cultura, mas vai mais fundo.


 


Então, eu resolvi provocar pegando essa história da rejeição porque ninguém fala nisso, mas eu considero a rejeição um componente muito importante na formação da nossa personalidade. Nós trabalhamos muito mal as perdas, o abandono, nós nos enlutamos, choramos, nos descabelamos quando somos recusados, rejeitados. Isso tinha que fazer algum sentido em relação ao Ceará, porque afinal de contas, essa terra foi oficialmente rejeitada. Ou seja, o donatário não veio pra cá. É claro que estamos falando em termos do simbólico, é tudo muito esgarçado, ancestral, pra gente querer aplicar. Também não estou propondo psicologia de pára-choque de caminhão, mas essa rejeição tem que, ou ela deve, ou ela pode interferir no rumo desse processo da construção de um cearense. É claro que é absolutamente diferente de uma província que deu certo, que foi exemplo, onde houve cana-de-açúcar, ouro. Aqui houve areia.


 


 


O senhor fala que o cearense não sabe lidar com o sentimento de perda. Mas isso não é humano? Está na mitologia grega. Está em Virgíllio, pai da literatura latina, quando Dido incendiou a si própria ao perceber a fuga de Enéias. A história do homem não é, em si, uma história da perda e da superação dela?


 


Sim, mas no caso cearense nós somos frutos dessa rejeição, somos produto dessa rejeição.


 


Quando o senhor fala de rejeição, eu lembro da explicação dada por Capistrano de Abreu que justificaria, do ponto de vista geográfico, a demora na ocupação do Ceará. Uma das hipóteses é que os territórios do litoral mais ao nordeste teriam como dificultador o acesso pelo mar revolto com muitos ventos.


 


 


Eu prefiro acreditar em rejeição porque, por exemplo, o Maranhão foi ocupado, o Pará foi ocupado, Pernambuco foi ocupado. A palavra rejeição é muito forte. Nós poderíamos trocar por desinteresse, por descaso, pouca importância. O que eu estou querendo dizer é que não é a terra em si que foi rejeitada. E sim nós, que somos filhos da terra. Não somos fruto de uma relação de paixão como de Martin por Iracema. Eu proponho que nós nascemos de uma relação de rejeição. Nós fomos largados, nós somos órfãos. Antônio Cardoso de Barros não quis vir aqui. A partir daí nós ficamos pernambucanos, depois nos emancipamos já quase no século XIX. E isso é muito complicado.


 


 


Essa sua proposta se apresenta de forma muito determinista. Imagine viver agarrado a uma idéia de rejeição e basear a vida, a produção intelectual e os relacionamentos a partir disso. Essa hipótese não é muito cruel com os cearenses?


 


É muito cruel sim. Agora eu diria que talvez seja necessário ser um pouco cruel para compreender a crueldade que reina aqui. Tem que haver uma explicação pra gente ser tão maltratado, tão rejeitado, tão espezinhado, tão ridicularizado, tão negado aqui. O cearense não admite, em hipótese alguma, o sucesso de outro cearense, o bem estar de outro cearense. Você tem de se nivelar por baixo na miséria, na mesquinharia. Essa não é nenhuma verdade definitiva, não fiz nenhum estudo, é uma tese, uma proposta dura. Não é uma proposta que coloque o Ceará no colo, é uma proposta que vai talvez, nos ajudar a entender, ou pelo menos vai nos ajudar, a partir de algumas reflexões, algumas posições contrárias a essas, sermos um pouco menos perversos do que nós somos.


 


O senhor fala do que se sofre, mas muito do que nós mesmos somos capazes de fazer sofrer.


 


Sim, do que nós somos capazes de fazer. Um dos grandes mitos que eu tento desconstruir nas salas de aula, nos meus textos, é o mito da hospitalidade. O cearense não tem nada de hospitaleiro. O cearense é extramente…


 


Dogvilliano?


 


É. Ele é grosseiro. Isso aqui não é uma terra de hospitaleiros. Cearense não dá bom dia, não pede licença, não diz obrigado. Que hospitalidade é essa?


 


Durante a sua reflexão, o senhor analisa o processo do cearense ter apagado os traços da cultura indígena e negra na escrita da sua construção histórica. Mas o Brasil não caminhou nessa direção tentando apagar a herança indígena e negra? Os Institutos Históricos que surgiram no século XIX não tinham essa função de reconstruir nossa história? O Brasil não fez campanha, inclusive, para o branqueamento da população?


 


É verdade que existe até essa história maluca de que o Rui Barbosa queimou documentos, mas você tem razão, o que você está falando faz sentido, houve todo um processo de mascaramento, de negação, de branqueamento e tudo, mas o mais estranho é o fato de que a nossa negação indígena tem até decreto, do ano de 1861, que determinou: não tem mais (índios no Ceará). Foi uma constituição ideológica, mas que passou por lei.


 


Professor, o senhor ressalta no ensaio publicado, os anseios de liberdade do povo cearense. A participação nas revoluções de 1817, 1824, as lutas abolicionistas, os movimentos literários. Tudo isso não vai de encontro a essa proposta de um povo rejeitado? Ao contrário, não é um povo que busca justamente a liberdade, que tem uma proposta de enfrentamento aos obstáculos que o impedem de trilhar o seu caminho?


 


 


Eu diria que essa questão (do rejeitado) não vai se projetar em toda a história do Ceará. Por exemplo, eu considero que nós fomos capazes, em vários momentos, de tomarmos as rédeas e contestarmos. Nesse contexto está a eleição da Maria Luíza Fontenele, em 1985. Eu acho que nós nos antecipamos em muitas questões, entre elas, a Padaria Espiritual. É como se nós tivéssemos, de vez em quando, uns intervalos, uns suspiros. Eu estou falando da tendência prevalecente, da maioria. Ou da minoria silenciosa. É ela que cozinha essa perversidade. Algumas pessoas, por exemplo, falam com muita nostalgia das cadeiras nas calçadas. As cadeiras nas calçadas eram algo extremamente maldoso. As pessoas estavam ali não apenas para tomar um vento fresco, mas pra falar mal dos outros. Que a filha da dona fulana não é mais virgem, que o filho da dona sicrana é homossexual, que o marido de fulana leva chifre, que a mulher tá muito gorda, ou passa fome e tá muito magra. É uma nostalgia de uma falsa cordialidade.


 


Agora, o Ceará é um lugar de onde surgiram manifestações muito importantes e a Padaria Espiritual, foi um desses movimentos. Disso não se tem dúvida. Não se trata de uma negação sistemática de tudo o que foi feito aqui. Mas talvez me incomode esse caráter pouco amoroso, pouco amistoso das pessoas daqui, embora eu seja daqui e faça questão de ser. Não falo com sotaque de nenhum lugar. Nasci aqui, provavelmente vou morrer aqui, mas me incomodam essas coisas. Eu gostaria de ver esse lugar melhor, com mais generosidade, mais afetividade.


 


Mas com essa origem de rejeição, que deixa seqüelas, como o senhor mesmo afirma, existe possibilidade de mudanças?


 


Eu acredito que sim, agora teria de ser feita uma catarse. Está sendo feita alguma coisa muito pequena. Nós temos os Capes que fazem atendimento psicossocial nos bairros. Na verdade, precisamos de uma grande psicanálise coletiva pra gente rever algumas questões. Porque muitas vezes, a gente nem se dá conta. Isso que eu estou dizendo em relação aos cearenses eu me incluo: eu sou perverso, sou maledicente, sou ferino, não sou nenhum santo. Gostaria também de rever essas coisas, porque não queria me tornar uma caricatura. Essa rejeição pode ser superada. Temos pessoas interessantes aqui, manifestações artísticas e estéticas importantes. Temos uma tradição oral muito rica, temos um povo maravilhoso. Parafraseando Câmara Cascudo: nesse campo da rejeição, o pior de tudo são as elites, o povo é muito bom.


 


O senhor propõe o riso como uma saída para tudo isso mas, ao mesmo tempo, fala que o nosso riso é destrutivo. Não existe aqui uma contradição?


 


Quando eu falo do riso não estou mais falando do riso espontâneo, porque esse riso nós não temos mais. Nós perdemos isso com o inchaço da cidade. Perdemos aquela capacidade que tínhamos no século XIX e começo do século XX de termos os nossos excêntricos, de vaiarmos o sol, de apulparmos as pessoas. Havia uma relação que a cidade tinha com Chagas dos Carneiros, os Levi, com o Manezinho do Bispo, e talvez o nosso último excêntrico tenha sido a Burra Preta. Quando eu falo desse riso estereotipado, destrutivo, estou falando desse pouco refinamento do chamado humor cearense espetacularizado. Esse riso é importante na ocupação de espaço no mercado, mas é pobre na sua formulação, ele não é inteligente, não é irônico, não chega sequer a ter duplo sentido, ele é explícito, é baixo corporal. Nesse sentido é que ele não se desdobra e por isso, não alcança a dimensão que ele poderia alcançar. Nosso riso coletivo, de multidão, esse acabou há muito tempo e se transformou nos gritos das torcidas e na pancadaria que nós temos depois dos jogos do Fortaleza e Ceará. Isso não é nostalgia, é constatação. A cidade cresceu e perdeu essa relação que tinha com as pessoas mais excêntricas.


 


O senhor considera, então, que a cidade perde-se de si mesma?


 


A cidade cresceu muito e quando ela cresce vai se esfacelando. Ela perdeu também nesse processo de crescimento desordenado, sem planos diretores, com toda essa ênfase na especulação imobiliária, mas o mais triste de tudo é que nós perdemos a nossa alma nessa história, perdemos nossa essência não estou falando no sentido de identidade, que eu acho um conceito muito complicado – mas nós perdemos num aspecto que nós poderíamos ter numa cidade, embora multifacetada e plural, mas uma cidade que tivesse um fi o, que tivesse algo que nos unisse. Nós nos fragmentamos muito.


 


Professor, o senhor se sente estrangeiro na sua terra?


 


Me sinto. Durante algum tempo eu senti muito bem aqui, mas agora não me sinto mais. Tenho a sensação de que não moro aqui. Na verdade eu moro num lugar chamado Maraponga. Meus únicos contatos com a cidade são através do emprego e tenho um contato com a cidade muito estranho que é midiatizado.


 


O senhor é um professor de jornalismo, que está formando novos profissionais e que de alguma forma ensina a amar essa terra quando desperta neles um olhar para a cultura do povo, sua oralidade, seus costumes. Não é muito emblemática essa sua relação com essa terra que o senhor parecer odiar ao mesmo tempo em que ensina a amá-la?


 


Eu também não entendo, mas eu tento não levar para os meus alunos esse meu pessimismo. Ele é muito trabalhado para que eu não possa inocular esse vírus do pessimismo em meninos e meninas de 18, 19 e 16 anos. Tenho consciência de que isso tem um certo limite. Tenho também a consciência de que ajudo a formar essas pessoas e tento fazer com que elas sejam melhores do que o que eu sou.


 


 


Fonte: O Povo