Meu Encontro com Lamarca
… ''O capitão Lamarca está em Cotaxé (distrito de Ecoporanga, ES) e precisa dinheiro para sair do Estado''! Afirmou um tanto medroso, suando frio o tal Manoel. – '' Ele precisa de Cr$400.000,00, (cruzeiros) para ir em frente. Não
Publicado 25/06/2007 11:43 | Editado 04/03/2020 16:43
Iran Caetano*
'' Carlos Lamarca, considerado o mais perigoso líder terrorista no País, foi morto em tiroteio com as forças de segurança, na pequena localidade de Pintada, interior da Bahia. O encontro decisivo ocorreu há dois dias, mas somente ontem foi feita a identificação oficial do cadáver, mediante confronto com as fichas datiloscópicas.
Com base numa serie de indícios, as autoridades haviam montado no Centro-Oeste baiano ampla manobra de cerco que aos poucos foi se apertando e terminou com a localização de Carlos Lamarca e um companheiro, José Campos Barreto, em Pintada. Eles descansavam sob uma árvore e só viram os agentes de segurança quando estes estavam a 20 metros. Abriram fogo imediatamente, sem atender à ordem de rendição, mas acabaram caindo mortalmente feridos.
Quanto a Iara Yavelberg, companheira de Lamarca, revelaram as autoridades que ela se suicidou em agosto, em seu apartamento de Salvador.''
Publicado na Folha de S.Paulo, domingo, 19 de Setembro de 1971.
Numa quarta feira, à noite, mais ou menos 22h estava vendo um filme no antigo cinema São Luiz, no parque Moscoso. Era um filme francês, uma comédia de situações. De repente alguém toca meu ombro e me chama pelo nome.
– ''Precisamos conversar agora! É urgente!'' disse o cidadão (não citarei seu nome pois não estou autorizado) digamos que seja Manoel…
Preocupado, pois nesta época estava plenamente engajado na luta contra a ditadura militar e filiado ao PC do B, sabia que o nosso partido era muito perseguido. Saí… Fomos ao Dominó. Um bar próximo, que acredito não existir mais.
– ''O capitão Lamarca está em Cotaxé (distrito de Ecoporanga, ES) e precisa dinheiro para sair do Estado''! Afirmou um tanto medroso, suando frio o tal Manoel.
– '' Ele precisa de Cr$400.000,00, (cruzeiros) para ir em frente. Não sei prá onde!''
– ''Onde vamos arranjar tanto dinheiro uma hora destas?''.
– ''Todo mundo está dormindo.''
– ''Sei lá, você que conhece as pessoas tem que se virar. Ele pode ser assassinado se não sair urgentemente de onde está''.
Problemaço, diriam os jovens de hoje…
– ''Vamos pensar. Tem o Dr. Fulano, tem a Presidente do DA da Medicina, o professor Vicente, da escola de Medicina. Tem o Tavares, tem o Dines Brozeghini, e tem fulano, tem fulana, tem o Padre tal, o Jornalista tal… . Listamos uns quinze nomes.
– ''Tudo bem, vamos procurar esse pessoal, acho que será possível.''
Primeira abordagem: Professor Vicente Campana da escola de Medicina.
Difícil foi descobrir sua casa. Mais de meia noite. Tocar campanhia na casa de um esquerdista em plena ditadura já é quase um atentado.
– ''Quem é?'' Nos atendeu uma voz de mulher sonolenta.
– ''Queremos falar com o Professor, somos seus alunos e é urgente''.
– ''Vicente está num congresso no Rio. Voltem outro dia''.
Não desisti. -''Diz a ele que é o aluno fulano. Ele me conhece.''
Silêncio…
– ''Você estuda em qual faculdade?''. Respondi :-''Medicina da UFES. Diz a ele que sou quem digita suas apostilas de Bioquímica''.
A porta se abre. Ele estava ali. Reconheceu minha voz.
Contribuiu. Pediu desculpas. Afinal os tempos são terríveis.
Passemos adiante.
Tavares nos recebeu de pijamas. – ''Vocês são loucos! Uma coisa é pagar uma passagem para congressos da UNE, mas ajudar Lamarca. Eu não. Isso tudo é muito perigoso.''
Dines Braga: quase duas horas da madrugada. Acordou preocupado. Me conhecia bem. Ao ouvir minha voz pulou da cama.- ''Que foi camarada? Prenderam alguém?'' Expliquei o que era. Foi lá dentro, trouxe um dinheiro: -''Não é muito, mas é o que tenho''. Tudo bem. Temos uma longa noite pela frente.
O Dr. fulano, (não posso citar seu nome). Nos recebe mal humorado: -''isso são horas?''. Contribui de má vontade. Anos depois viria a ser prefeito de Vitória. Atualmente nega que esse episódio tenha acontecido.
O Padre não questionou. Apenas contribuiu e disse que não queria saber para o quê. -''A essa hora da madrugada só pode ser importante''. Tinha razão. Quanto menos se sabia, menos se falava.
– ''Vamos à casa da presidente do DA de Medicina. Ela é meio burguesa, mas quem sabe?''
Tocamos a campanhia e o alarme disparou. Seu pai veio a varanda. Armado. – ''quê que tá acontecendo?''.
– ''Queremos falar com sua filha!'' Ela aparece na varanda. -'' Oi . Quem morreu?'' ria do nosso susto. – '' Pai, pode deixar, são meus colegas de Faculdade''.
Ela desceu e explicamos detalhadamente o assunto.
– ''Vou ter que mentir pro meu pai. Se contar a verdade ele chama a Polícia! Vou dizer que tem algum aluno internado, grave, e não tem dinheiro para pagar a conta''. ''Quanto falta?'' Fizemos as contas ali mesmo. -''Deixa comigo''. Daí a pouco ela volta com o restante. Agradecemos. Ela retruca: -''nada disso, me comprometi a devolver. Meu velho é mão de vaca''.
Criamos o baile da Medicina para pagar ao pai. Foi até bom. Pagamos e o baile durou por mais vários anos.
Cinco horas da manhã. Encontro com Zequinha (foi o nome que ele nos deu). Antiga rodoviária da viação Itapemirim.
– ''Vocês salvaram a vida do Capitão''. Foi sua despedida.
Lamarca foi um herói brasileiro. Ousou enfrentar o regime militar. Regime ilegal.Totalitário. Um regime de horrores. Torturas. Assassinatos. Monstruosidades diversas. Mas infelizmente nosso Capitão não conseguiu criar em torno de tanto heroísmo o ambiente para fazer uma resistência necessária para abalar o regime…
Algum tempo depois a Folha de São Paulo publicou a notícia que vocês leram acima.
Esse foi apenas um dos episódios da resistência.
*Iran Caetano é médico e Secretário Político do Comitê Municipal de Vila Velha, PCdoB/ES.